Encaminho a reflexão seguinte em solidariedade ao poeta Luís Arias Manzo, do movimento Poetas del Mundo, que informou aos autores de poesia do planeta a invasão da página universal do movimento, que perdeu muitas informações e colaborações acumuladas naquele registro virtual.
O que leva, no mundo pós-moderno, a poesia a incomodar? Quantos atos de vandalismo virtual há que detonam a poesia e de que nem tomamos conhecimento, mas nos impedem de assumir atitudes críticas em função da humanidade? De resto: ainda existe mesmo uma humanidade?. Não estaríamos vivenciando o tempo próximo do caos absoluto, de destruição do outro em nós mesmos? De violência degeneralizada consentida pela inconcebível e absurda impotência de se fazer alguma coisa contra a devassa total da Terra, pior, de sua gente? Da deturpação grandiloquente dos valores perante uma ética que agora pode ser comprada, vilipendiada, anulada por conluios e contratos sociais estabelecidos à revelia do mundo? Do afrontamento agressivo dos segmentos antes marginalizados? Da prostituição da alma? Da irreversível e definitiva quebra do cristal ante a exposição dos dejetos humanos? Das guerras étnico-religiosas em nome de um deus non sense? Da perda da privacidade via tecnoeletrônica imoral?
Os hackers que detonaram a página de Poetas del Mundo estariam conscientizados de que, como escreveu Cesare Pavese, “a literatura é uma defesa contra as ofensas da vida”? De que escreveu, não leu, o pau comeu, como diz o provérbio? Que Virgílio já havia previsto na Eneida que “arma uirumque cano” (as armas e o herói eu canto), como faria Camões depois n’Os Lusíadas – “as armas e os barões assinalados”? Aperceberam-se esses ignomiosos que Shakespeare havia dito ser preciso levantar armas contra esse mar de problemas que é a vida?
Teriam os hackers conhecimento de que, como admoestou Clarice Lispector, é preciso não ter medo de criar? “Por que o medo? Medo de conhecer os limites da minha capacidade? Ou medo do aprendiz de feiticeiro que não sabia como parar”, escreveu ela.
Aprendeu essa estirpe daninha à vida que “metáforas concentram mais verdades em menos espaço”, como assevera Orson Scott Card? Que “é impossível desencorajar os escritores de verdade, (porque) eles não se importam com o que você diz, eles vão escrever de qualquer jeito”, como assinalou Sinclair Lewis?
Na escola da depravação humana, os hackers talvez tenham aprendido que a poesia, além de “ensinar e deleitar”, como queria Horácio, é “o ato de escrever como o ato de descobrir no que você acredita” (David Hare). Que a literatura é “uma arma pacífica de resistência”, como pontuou Rubem Fonseca no conto “Intestino grosso”? Que a poesia é uma arma de crítica e denúncia social? Que, como escreveu Marina Tzvietáieva, “enquanto houver palavra todo o país está em chamas”? Que palavras são armas secretas, preconizou Julio Cortázar. Que “a função dos sonhos é a mesma das histórias de ficção: simular na mente como nos sentiríamos se enfrentássemos conflitos que nos assustam e realizássemos nossos desejos mais secretos”, disse Diego Schutt.
Ou então seria porque, como escreveu Fernando Pessoa, “a literatura, como toda arte, é uma confissão de que a vida não basta”. Que “a literatura é uma inspiração para a realidade” (Romain Gary). Que “palavras, uma vez que são impressas, têm vida própria” (Carol Burnett). Ou para coadunar propósitos e intenções com Augusto Roa Bastos: “Eu escrevo para evitar que o medo da morte se agregue ao medo da vida”.
O fato é que é preciso se perguntar: por que os hackers têm o direito de usurpar a poesia? Você aceita passivamente que energúmenos vençam a virtude da vida?
Márcio Almeida é escritor