Consolo oculto

Em Corpo à vela, Elizabeth Gontijo cultua a beleza formada de espaços e tempos. O livro oferece experiência estética redobrada ao aliar aquarelas ao canto das palavras

por 06/09/2014 00:13
Fábio Lucas

Ao entrarmos em contato com os objetos que a memória de Elizabeth Gontijo evoca, reconduzindo a magia rural à dicção urbana, em Corpo à vela (7 Letras), fonte da riqueza vocabular da poeta, nos damos conta da temática que sustenta a produção lírica. É forte o paisagismo dos poemas. Descrevem estes os momentos íntimos do espírito em busca do consolo oculto nas formas visíveis e na harmonia das palavras.

Regem-nos as cores, as luzes, tudo enfim envolvido de sinais nostálgicos. A poeta também se mostra uma aquarelista. Outrora se faziam cromos para esse efeito, ou seja, para elaborar poesia descritiva de uma cena ou paisagem, plantas, flores.

O texto vem a ser um tecido fino, traçado por uma sensibilidade que transcende o aparato vocabular.

 Elizabeth Gontijo resgata a arte poética dedicada à expressão singela, pejada da eloquência do passado de tudo aquilo que se perdeu, mas que, entretanto, ficou aprisionado ao poder da manifestação verbal.

 O meio-tom é da elegia. O prazer da leitura advém da arte inerente ao canto das palavras, às sugestões que emanam do culto da passagem do tempo ou da retenção dos traços que compõem a beleza e ambição de ousar a eternidade.

São belas as lembranças da avó, da mãe, da maturidade.

É comum, entre os melhores poetas, o verso final, quem sabe a chave de ouro, fecho independente a desafiar o contexto da composição. O grito do coração ferido, da mente inconsolada. “Porto qualquer” é assim; “Canto calado” também.

A obra se apresenta ilustrada, o que regala o leitor com o prazer adicional do requinte plástico. A leitura se torna igualmente um culto. O culto da beleza estética formada de espaços e tempos.

Corpo à vela ingressa nas letras sob o pálio da melhor companhia: Guimarães Rosa, Jacques Prévert. A metalinguagem acode para consolidar conceitos que enaltecem a poesia – “Solo”, por exemplo. Temos uma coleção de reminiscências de uma criança ou de uma adolescente de mente enérgica. Incontáveis são os poemas confessionais –“O sol o sal”, “Intervalo”. Sombras, mistérios e facetas do medo ocorrem nos poemas de cunho intimista. Mais uma vez, Elizabeth Gontijo dignifica a expressão lírica.

Fábio Lucas é crítico literário


CORPO À VELA
• De Elizabeth Gontijo
• 7Letras, 104 páginas, R$ 35

OS POEMAS

Solo

Não.
Não sou mais bela
nem mesmo adormecida.
Beijo antigo me desencantou.
Sou quase velha
e acordada:
à raiz dos cabelos
constantes retoques.
Mais uma ruga fisga-me o rosto
e sob a pele finíssima,
cintilam
veias azuis.

Não sou mais bela,
    não!
   Conquanto
em algum canto meu
viceje eterna
a Poesia.

• • •
Porto qualquer

Na calçada
a meio fio sentada
ela enfim
da dor se distrai:
a seus pés
carreira de formigas
formiguinhas... formiguinhas...
quase nadas...

Em seu pensamento,
coisas não mais pertencentes:
flocos de nuvem,
estrelinhas,
faíscas boninas...

Em seu céu,
roxo silêncio.

• • •

Canto calado

Decalque de um céu
sem nuvens:
na ponta duma palmeira
em perfeito equilíbrio
descansa
o melro azul.

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