Primeiro homem moderno

Nascido no século 4, Agostinho de Hipona pode ser considerado um pensador contemporâneo pela universalidade e permanente atualidade das questões que elaborou sobre o indivíduo e a sociedade

por 30/08/2014 00:13
Santo Agostinho, de Simone Martini, Museu Fiztzwilliam, Cambridge/Reprodução
None (foto: Santo Agostinho, de Simone Martini, Museu Fiztzwilliam, Cambridge/Reprodução)
Luiz Antônio Pinheiro

Santo Agostinho, Aurélio Agostinho ou Agostinho de Hipona, como ele mesmo prefere ser chamado, é um homem contemporâneo. Ao sobreviver a mais de 16 séculos, continua atualíssimo, sendo um daqueles pensadores com os quais a contemporaneidade pode dialogar em profundidade, para além dos modismos e “amores líquidos” que caracterizam nosso tempo, como bem detectou Zygmunt Bauman.

Africano de nascimento e romano de cultura, ele viveu não apenas numa “época em mudanças, mas numa mudança de época”, nos séculos 4 e 5 da Era Comum (13/11/354 – 28/8/430). “Vós dizeis: os tempos são difíceis, são tempos duros, tempos de desgraças. Vivei bem e, com uma vida boa, mudai os tempos. O tempo não prejudicou ninguém. Os que são prejudicados são os homens e aqueles de quem recebem os danos são homens. Portanto, mudai o homem e mudarão os tempos” (Santo Agostinho, Sermão 311,8,8).

As mudanças são um fato da natureza, da vida, da história, de cada pessoa. Agostinho compreendeu bem isso fazendo uma especulação acerca da interioridade do tempo, enquanto categoria subjetiva de compreensão do fenômeno espaço-tempo, a partir da concepção judaico-cristã da creatio ex-nihilo (tudo foi criado por Deus a partir do nada).

Agostinho é, na expressão de Henri de Lubac, um daqueles clássicos de “pensamento fecundante”, que, sem dar respostas fáceis e conclusivas, nos incitam, a partir de questões que nos são comuns, a buscar nossas próprias respostas. Ou ainda, segundo Thomas Martin, mestre de uma “espiritualidade pensante”, que não pode renunciar à indagação honesta e consequente dos grandes temas que acossam a alma humana e os homens e povos de cada época. Ou ainda na concepção de Karl Jaspers, “o primeiro homem moderno”, que colocou a subjetividade como ponto de partida para a compreensão do homem, da vida, do cosmos.

Agostinho é um homem da inquietude, da busca, tendo-se colocado muitas questões. Talvez não concordemos com todas as respostas que ele tenha dado a elas, mas concordamos sim com suas principais questões, porque elas continuam atuais, pois tocam pontos nevrálgicos da existência humana e que conservam certa perenidade, para além da fluidez dos conceitos e relações descartáveis da cultura do efêmero. Sua célebre frase “fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Ti” (Confissões I,1,1) constitui um programa de investigação acerca das questões fundamentais do homem: quem sou eu? qual o sentido da vida? de onde vim? como nasceu o universo? para onde vou? é a morte o fim de minha consciência pessoal?. O porquê da dor, do sofrimento, do mal...

O mundo moderno, influenciado por Platão, Agostinho e Pascal, tematizou essas mesmas questões, cunhando a expressão “profundezas do homem”, significando que na essência do homem há algo mais que o próprio homem (Heidegger). A alma humana é como um abismo, as águas mais profundas do mar. A razão não dá conta de abarcar a profundidade do ser humano: a inteligência, a vontade, a liberdade, a generosidade, a solidariedade desvelam “profundezas abissais” que, jorrando como um manancial de verdade, intuição e inspiração, dão um novo vigor à existência humana, iluminando a própria razão. As imagens relativas ao mar proceloso, ao abismo, são metáforas da condição humana, da alma, do ser mais profundo do homem. Fazem parte da psicologia do mundo antigo, amplamente explorada por Agostinho a partir de sua própria situação existencial.

Por outro lado, a fluidez e a obscuridade também qualificam o abismo da alma humana como noite e tempo inefável (passado, presente e futuro). Para o homem que se enfrenta, tudo está envolto na obscuridade: Deus, a alma, o mundo. De alguma forma, Agostinho antecipou as pesquisas de Freud e Jung e os outros psicanalistas ao perscrutar o lado sombrio de si mesmo, divisando nas dobras e penumbras da alma uma verdade ao mesmo tempo “mais íntima que o meu íntimo” e “infinitamente superior” à razão.

Dessa feita, o homem perdido em suas profundezas não está totalmente perdido, pois o seu próprio grito o eleva na busca de um sentido. O que é puramente temporal, sem relação com o eterno, que Agostinho entrevê na própria alma, carece de sentido: o mundo, a vida, o homem, sem Deus, não refulgem em toda a sua luminosidade. Para ele, perder-se no temporal, nas coisas transitórias, no efêmero, nele buscando o fim último ou a satisfação plena, que chamamos felicidade, é perder-se no emaranhado de uma selva. O seu encontro com Jesus Cristo, cujo nome ele “bebeu com o leite de sua mãe”, deu-lhe a chave de compreensão dos grandes mistérios de si mesmo, da vida e do mundo. O tempo e a eternidade vinculam-se entre si e Cristo, que é ao mesmo tempo temporal e eterno, o qual salvou ou redimiu o tempo por havê-lo feito partícipe da eternidade. Em outras palavras, Cristo se fez luz e guia dos peregrinos na selva obscura que chamamos a existência temporal dos homens e ao mesmo tempo o lugar de descanso seguro por toda a eternidade.

Este e outros tantos temas clássicos de seu pensamento foram abordados em obras circunstanciais ou tratados sistemáticos. Há uma série de questões polêmicas, tais como a justificação da violência da guerra justa e da inquisição, supostamente influenciadas por Agostinho, que, na verdade, pertencem à interpretação medieval de seu pensamento, denominada “agostinismo político”, tema bem estudado por Henri Marrou.

É necessário levar em conta que as obras de Agostinho não têm o mesmo peso: há tratados, elaborados sistematicamente anos a fio; há escritos de circunstância, como resposta a consultas; escritos polêmicos; cartas, comentários, sermões e homilias. Essas obras são escritas num arco de tempo muito longo, mais de 40 anos, elaboradas a partir da experiência de Agostinho em muitos campos. Há enfoques diferenciados, de acordo com o contexto. Por exemplo, em sua juventude adulta, no debate com os maniqueus, que negavam o livre-arbítrio, Agostinho apostou com muito otimismo na liberdade humana.

Na sua fase madura, a partir de 412, ele dará um peso maior à graça, na polêmica com os pelagianos, que tinham, segundo ele, uma exacerbada confiança no arbítrio humano. As obras de um mesmo tema são diferenciadas. O problema é quando se toma um pensamento isolado de seu contexto. Aliás, isso vale para qualquer autor. O próprio Agostinho se reinterpreta a cada momento, tendo feito uma revisão de suas obras três anos antes de morrer: Retractationes.

Outro problema são as traduções, nem sempre confiáveis, ou o uso de manuais, sem ir às fontes originais. É necessário também compreender que Agostinho se move numa “cultura da oralidade”, em que as refinadas técnicas de retórica tinham os seus cânones. Estamos acostumados à “cultura visual” e agora à “cultural virtual”. Por isso, num primeiro momento, nem sempre é fácil ler Agostinho ou os autores antigos.

Corpo e política Já se vai o tempo em que Agostinho ficou marcado com a alcunha de “pessimista”, principalmente em temas ligados à afetividade, ao corpo, sexualidade, questões de gênero, tão ao sabor da década passada. Peter Brown, um dos maiores biógrafos de Agostinho, e um dos mais críticos comentaristas, abordou com grande competência e lucidez esse aspecto em duas obras, felizmente já editadas no Brasil: Santo Agostinho, uma biografia (Record) e Corpo e sociedade (Jorge Zahar).

Recentemente, iniciou-se a publicação de uma coletânea de estudos agostinianos, dos quais destaco a obra organizada por Robert Dodaro e George Lawless, Agostinho e seus críticos (Scripta), que busca fazer uma releitura crítica dos críticos de Agostinho, sobre estes e outros temas mais atuais, abordados em suas cartas e sermões, encontrados nas duas últimas décadas do século passado e outras já no novo milênio.

Em 1981, foram publicadas 29 cartas de Agostinho descobertas por Johannes Divjak. O pesquisador estava catalogando os manuscritos agostinianos quando encontrou na biblioteca municipal de Marselha um manuscrito do século 15, onde havia cartas já conhecidas e outras tantas até então desconhecidas. Num primeiro momento considerou-as inautênticas. Mas depois de um estudo comparativo do estilo, do vocabulário e do contexto, ele e outros estudiosos se convenceram de sua autenticidade.

Posteriormente, ele encontrou um segundo manuscrito, do século 12, na Biblioteca Nacional de Paris, que confirmou a autenticidade das cartas anteriores. Nelas encontramos referências à controvérsia pelagiana, preocupações cotidianas de Agostinho como escândalos de clérigos, finanças da Igreja, pessoas que buscam refúgio na Igreja. Além disso, deram a conhecer o envolvimento de Agostinho em questões eclesiásticas da África, e aspectos assustadores e deprimentes da vida no tardio império, como as ameaças à paz e à segurança das pessoas, a escravidão, a violência e a injustiça.

François Dolbeau descobriu em 1990, na biblioteca de Mogúncia, 26 novos sermões até então desconhecidos. Na época, ele descreveu com acertadas palavras a felicidade dos estudiosos que efetuam descobertas espetaculares como essa: ler esses sermões é uma experiência comparável somente à “emoção que se experimenta quando uma fita gravada nos restitui a voz de um amigo que se perdeu há muito tempo”. Mais recentemente, em 2007, alguns pesquisadores da Academia de Ciências de Viena descobriram na Biblioteca de Erfurt um manuscrito do século 12 contendo seis sermões inéditos de Agostinho.

Essas descobertas lançaram uma nova luz sobre Agostinho, principalmente no que tange ao seu pensamento político. Robert Dodaro, um dos mais interessantes estudiosos de Agostinho na atualidade, explora esse viés, investigando, por exemplo, o seu pensamento político nas Confissões, destacando a acerba crítica do hiponense em torno à retórica como uma espécie de “mass mídia ideológica” da época antiga.

Dodaro apresentou alguns desses temas num simpósio sobre a releitura do pensamento de Santo Agostinho, promovido pela Organización de Agustinos de Latino América, no México, em 2002: “Santo Agostinho ativista político e defensor dos direitos humanos”. Dodaro apresenta Agostinho como o “pai do ativismo político cristão”. Ele assevera que Agostinho respeita a ordem política existente, mas não é um sujeito complacente ou passivo diante dela. Apoia a lei na teoria e na prática, e procura que a lei seja melhor conhecida pelos oficiais públicos e pelo povo, e quer vê-las reforçadas com a aplicação de penas que ajudem a recuperação da pessoa e que sejam capazes, no entanto, de desterrar a atividade criminal.

O ativismo político de Santo Agostinho não é programático em seu conceito. Seu ativismo é prático, responde a enfermidades sociais particulares, tais como se apresentam na vida do povo pelo qual se sente responsável. Ao mesmo tempo, ele procura comprometer as autoridades e fazer funcionar as estruturas que preveem a aplicação da justiça. Seja ao buscar o conselho de um perito na lei romana, seja ao fazer recomendações para a nomeação de um qualificado defensor civitatis para sua cidade, seja ao eleger um emissário episcopal para representá-lo na corte imperial, Agostinho procura assegurar constantemente que seus esforços para conseguir a justiça sejam apoiados pelas pessoas mais competentes.

Assim, enquanto Agostinho não foge a seu próprio papel em alcançar seus propósitos políticos e sociais, entende que interceder pelos pobres e oprimidos requer uma orquestração dos ministros ordenados da Igreja com os leigos que realizam atividades próprias na vida pública por meio de seus talentos e competência profissional.

A atividade literária é, para Agostinho, um grande meio para interceder politicamente. Escreve cartas e memorandi; efetua buscas nos arquivos imperiais e municipais; compõe relatórios, primando pela clareza do pensamento e do estilo.

Alinhado a este ponto, o ativismo político se une à crítica política, que não deve ser entendida em sentido negativo. Agostinho não somente intervém junto aos oficiais públicos com o fim de modificar suas políticas ou procedimentos, mas também os convida a examinar com ele as raízes das enfermidades sociais e políticas. Desta forma, seu ativismo político se converte em atividade intelectual, conversação teológica sobre Deus, Cristo e a natureza do bem público, que leva a humanizar e cristianizar os que nele participam. Esse seu ativismo, por outro lado, lhe custou muito: tempo, trabalho pesado e dinheiro.

Luiz Antônio Pinheiro é frade agostiniano, professor de teologia e história do cristianismo na PUC Minas e no Instituto Santo Tomás de Aquino. E-mail: lapinheiro1@hotmail.com.

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