Em busca de Maga

No momento em que o mundo celebra o centenário de Julio Cortázar, sua obra segue abrindo caminhos

por 30/08/2014 00:13
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Arquivo EM (foto: Arquivo EM )
João Paulo Editor de Cultura %u2013 e-mail: jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

1) “Encontraria a Maga?” Assim começa um dos maiores romances do século 20, O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. Na verdade, esse é um dos começos possíveis do livro, já que o autor oferece pelo menos duas maneiras de acompanhar as 600 páginas da narrativa. No célebre “Tabuleiro de direção”, que antecede a narrativa, Cortázar afirma: “À sua maneira, este livro é muitos livros, mas é sobretudo dois livros. O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades”. A partir daí, oferece uma leitura corrente e uma leitura aos saltos, bem definidos, que impõem uma circularidade sem fim. Não seria a vida do autor passível da mesma provocação? É possível ler a existência de Cortázar, que teria completado seus 100 anos esta semana, como um conto cortarziano ou um take de jazz?

2) Há uma contradição invencível na vida dos grandes criadores. Com o tempo se tornam canônicos, geram formas confortáveis e reconhecíveis. Alguns se tornam adjetivos, ajudam a lançar luz sobre experiências que não são deles. Por isso, retornar ao autor, em seus textos, é uma espécie de viagem no tempo do próprio leitor. Fomos, toda uma geração e outras na sequência, formados por Cortázar. Resistiriam seus livros a uma segunda leitura, já despregados do contexto e por isso libertos da convenção e do experimentalismo? O jogo da amarelinha é ainda hoje um romance que impressiona pelos mesmos motivos: a forma, a erudição, a poesia, o realismo, o fantástico, o estilo, as personagens. Mas que parece se desdobrar em novos intentos. Menos como premonição e mais como confirmação. Sabíamos que muita coisa estava lá, esperando a hora certa de eclodir.

3) Publicado em 1963, O jogo da amarelinha lança Cortázar de uma vez no coração da literatura ocidental. Já havia escrito contos, morava em Paris e fazia parte do chamado boom da literatura latino-americana. O escritor não gostava da feia palavra inglesa nem da filiação, feita de fora para dentro. É um livro permeado por dualismos: realismo e fantasia, linguagem literária e oralidade, voz autobiográfica e invenção, poesia e prosa, real e irreal. O grande feito do autor é transportar o leitor de um lado para o outro sem que ele perceba, sem que, nas palavras de Vargas Llosa, “tenha a sensação de trânsito”. Para modular transições tão grandes, que colocam dois universos em paralelo, Cortázar se serve da musicalidade, sobretudo do ritmo, da imperceptível levada da prosa, do fraseado das ideias.

4) Resumir um livro imenso, que se esparrama pelo acaso, com ação habilmente construída e dotada de necessidade, é muito difícil. Os elementos: duas cidades, Buenos Aires e Paris, são cenários de acontecimentos, no sentido próprio da palavra. Não há um sentido histórico ou de subordinação. O que liga os fatos são os personagens, sobretudo Oliveira, mais uma contradição abrigada em uma única pessoa: sonhador e realista. Duas mulheres, Maga e Talita, representam também possibilidades distintas, da leveza ao férreo senso comum. A ambientação em Paris, cidade que recebe os insatisfeitos do mundo para criar possibilidades críticas a cada geração, traz ainda o sedutor Clube da Serpente, com seu gosto intelectual para discussões e jogos. Quem não quis mudar o mundo a partir de Paris, contando apenas com a inteligência, os amigos e a certeza de habitar o lado bom do homem? E há, ainda, Buenos Aires, seus párias e marginais, as exigências do dia a dia, a vontade de romper com tudo.


5) A história é um pretexto, ainda que poderoso, para um livro que é muitos livros. Um romance que caiu nas mãos dos leitores como uma revelação que começava pela forma para depois se fixar pelo que trazia de verdade humana. Uma literatura que não postulava a liberdade, mas a cumpria em seu projeto quase perfeito, que ganhava vida pela força do acaso, pela riqueza das possibilidades, pela abertura. O leitor, no primeiro momento, era tomado por uma exigência que brotava do livro e o conduzia de forma quase autoritária (nos ideológicos anos 1960, houve quem achasse que a atitude era um simulacro do machismo e o próprio Cortázar chegou a falar em “leitor-fêmea”). Em seguida, era exigido ao máximo em sua inteligência e criatividade a ajudar a construir a história. Cabia ao leitor, cada vez mais livre, criar seu livro ou até mesmo recusar o que lhe era ofertado.

6) Entre o autor e seus leitores-criadores, Cortázar abriu uma cunha para outro elemento, a cultura. O jogo da amarelinha é recheado de citações, debates internos, contestações e até interpretações do próprio livro que se está lendo. O manancial de erudição, no entanto, nunca é gratuito e sempre se liga à narração ou à interpretação do leitor. A autorreflexão, no entanto, em momento algum desmancha o prazer da história de Maga e Oliveira. Talvez seja a prestidigitação de tantos elementos, formais, ideológicos, romanescos, psicológicos e políticos, somados ao lúdico senso de dar consistência à forma inusual de um livro que se constrói a cada leitura, que renove o romance a cada frequentação e a cada geração. O jogo da amarelinha não fica velho, mesmo não havendo mais a Paris mítica dos cafés existencialistas, não habitando em nós o leitor que fomos um dia e nem mesmo existindo mais romances dignos do nome.

7) Cortázar gostava de música. Disse várias vezes que em vez de escrever gostaria de compor takes. Seu conto mais importante, O perseguidor, de 1959, que faz parte da coletânea As armas secretas, divide sua obra em antes e depois, ainda que muitos defendam os contos fantásticos e psicológicos publicados anteriormente em Bestiário. O personagem, Johnny Carter, é um músico de jazz, inspirado em Charlie Parker. Na opinião de Davi Arrigucci Jr., em seu O escorpião encalacrado (talvez o melhor livro sobre Cortázar em todo o mundo), o conto “ocupa um lugar muito especial no conjunto da produção literária de Cortázar. É desses instantes de alumbramento em que problemas fundamentais que preocupam o autor, construindo para ele tema significativo, conseguem, graças a uma técnica extremamente eficaz, expressão num todo orgânico, capaz de envolver o leitor no dramático debate que nele se trava a criação e crítica, nos meandros da consciência criadora, dilacerada no mundo contemporâneo”.

8) As observações mais correntes sobre o conto “O perseguidor” falam da forma, do improviso, da respiração do texto do ritmo. Da tentação impossível de dissolver uma arte em outra. Da busca da expressão musical pelas palavras. Da combinação dos dados da história com a fantasia, da reflexão sobre a condição do artista. Enfim, de uma série de questões que se espalham a partir daí em toda a obra do escritor argentino. Mas Cortázar, além do jazz, traz para sua obra a poesia do tango. O escritor elogiou em vários momentos a força dos letristas da música popular de seu país. Se o jazz parece carregar a modernidade, vinda sobretudo de Paris, cidade que sempre se abriu à música americana como sinal de liberdade, o tango joga para dentro e fundo. Sua referência portenha, por isso, se mostra mais na psicologia que na filosofia. Cortázar – e Oliveira de O jogo da amarelinha é um exemplo – lida com homens com sentimentos tangueros, com tudo de forte e dissolvente que essa identidade expressa. Há uma alma de malandro nos intelectuais argentinos em Paris.

9) Em entrevista ao jornalista uruguaio Omar Prego Gadea, lançada recentemente em livro no Brasil (A fascinação das palavras, Editora Civilização Brasileira), Cortázar confessa que chegava a rir de alguns tangos absurdos e bem ruins, mas destacava a sabedoria poética de composições como Mano a mano (que foi gravado, por Caetano Veloso). O tango, feito a partir do lunfardo (a gíria dos suburbanos pobres de Buenos Aires), narra a história de amor de um homem que, curtindo sua dor de cotovelo, elogia a amada sem deixar de expressar seu profundo machismo. Será que estamos condenados a admirar o jazz e amar o tango? Curiosamente, são gêneros que não têm medo da imperfeição, que vêm dos negros e que ganharam consideração vindos da periferia para o centro. Quanto mais Cortázar perseguia o solo perfeito, mais sua arte, por meio de seus personagens, ecoava as gírias da voz dos cantores de tangos e milongas.
 
10) Julio Cortázar, como muitos de sua geração, se aproximou das experiências socialistas revolucionárias na América Latina, com destaque para a cubana, país que visitou em 1963. Defendeu Fidel Castro até romper, ou ser “rompido” por ele, em 1971, depois de assinar uma carta com outros intelectuais pedindo informações sobre o desaparecimento do poeta Heberto Padilla. É sempre fácil julgar depois. É ainda mais simples se equivocar em julgamentos anacrônicos. Cortázar defendeu as revoluções, escreveu sobre a Nicarágua, foi autor de um conto em que Che Guevara era o personagem (“Reunião”), ficou ao lado de toda a inteligência da época contra as ditaduras que se espalhavam ao sul do Rio Grande. A filiação à esquerda, além de uma opção política, era um imperativo ético. Cortázar estava ao lado de Sartre, Pasolini, Susan Sontag e, naquele tempo, até de Vargas Llosa.

11) Julio Cortázar sabia que a convivência entre literatura e política é difícil, que traz questões que a história não cessa de apresentar, problemas que a cada época ganham novas respostas. Independentemente do que veio a acontecer depois com os regimes que apoiou, o escritor nunca deixou de se perguntar sobre como buscar esse equilíbrio dinâmico entre a literatura e o engajamento, entre a ética e a estética, entre a arte e a ideologia. Sobre O livro de Manuel, chegou a declarar: “A convergência (entre a história contemporânea e a literatura pura) é particularmente difícil, porque na maioria dos livros ditos comprometidos com a política – a parte política, da mensagem política – anula e empobrece a parte literária e se converte numa espécie de ensaio dissimulado, ou a literatura é mais forte e apaga a mensagem, deixando-a numa situação de inferioridade. Então, esse dificílimo equilíbrio entre um conteúdo do tipo ideológico e um conteúdo do tipo literário, que é o que quis fazer em O livro de Manuel, acaba sendo um dos problemas mais apaixonantes da literatura contemporânea”.

12) Que os principais personagens de Cortázar tenham ambivalência existencial e política não é um defeito, mas um reconhecimento da matéria de que somos feitos. Até quando errou, Cortázar deixou indicações para continuar o jogo da amarelinha da vida.

13) “O leitor fica convidado a escolher uma das seguintes possibilidades.”

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