Artesão dos sons

Biografia autorizada de Edu Lobo, escrita pelo jornalista Eric Nepomuceno, destaca a importância do compositor para a criação do padrão de qualidade da música brasileira

por 30/08/2014 00:13
Nana Moraes/Divulgação
Nana Moraes/Divulgação (foto: Nana Moraes/Divulgação)
Ângela Faria



Edu Lobo pode até não pensar assim, mas é “padrinho” de muitas moças nascidas depois de 1983. Explica-se: foi ele quem compôs a melodia de Beatriz, parceria com Chico Buarque que até hoje “batiza” meninas brasileiras – uma delas, sua própria neta. Discreto, avesso aos holofotes, rigoroso e exigente ourives da canção, esse carioca de 71 anos é um dos principais arquitetos da música popular brasileira contemporânea, embora pouca gente gente se dê conta disso.

A biografia autorizada Edu Lobo – São bonitas as canções é mais do que bem-vinda. Repórter experiente, Eric Nepomuceno, amigo há quase meio século do compositor, revela os bastidores da criação de boa parte da trilha sonora do Brasil. Beatriz, coitada, era chamada de “valsona” pelos autores. Pra dizer adeus era uma canção de amor, acreditava Edu, até ouvir no rádio a notícia do suicídio do parceiro, o letrista Torquato Neto.

Geralmente, quando se fala em MPB, vêm imediatamente à cabeça os nomes de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré e Milton Nascimento, por exemplo. Mas foi o autor de Pra dizer adeus quem inaugurou a segunda etapa da bossa nova.

O livro de Eric Nepomuceno dá a Edu o que é de Edu. “Não há como negar sua maneira singular de fazer música, tomando como pilar central a riqueza e a sofisticação harmônicas trazidas pela geração anterior – a que tinha Tom Jobim e Carlos Lyra como estandartes principais – e, a partir daí, impregnar a canção popular de uma herança cultural bem mais ampla e profunda. Até ali, os elementos da diversidade cultural brasileira – a raiz negra, a indígena, a europeia, com destaque para a vertente da música erudita – já haviam aparecido no trabalho de vários compositores populares da mais alta qualidade, mas sempre de forma isolada. Com Edu Lobo, todas essas raízes se uniram na obra de um só autor de canções populares”, escreve o biógrafo. Não foi à toa que Tom Jobim decretou: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. O texto está no songbook do parceiro, lançado em 1995.

Obrigação

Muito jovem, Edu Lobo estudou acordeom, como os garotos de sua idade. Odiou a obrigação de carregar aquele monstrengo no calor senegalês do Rio de Janeiro, trocando-o pelo violão. O rapaz era mesmo precoce: com 19 anos, compôs a primeira canção com Vinicius de Moraes (Só me fez bem); veio dele a inspiração para Gianfrancesco Guarnieri escrever Arena canta Zumbi. Graças a Edu, Elis Regina brilhou pela primeira vez, em 1965, vencendo o 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira com Arrastão (outra parceria com Vinicius). Dois anos depois, ele mesmo ganhou o 3º Festival de Música Popular Brasileira com Ponteio, dobradinha com o poeta José Carlos Capinan.

Aos 20 e poucos anos, Edu Lobo já era celebridade. Entediado com a roda-viva das turnês, largou tudo e foi para os Estados Unidos com a mulher Wanda Sá, com quem ficou casado por 12 anos, estudar música. Acolhido por Sérgio Mendes, já um hitmaker mundial, cravou quatro canções no disco From the hot afternoon, de Paul Desmond, lenda do jazz. As outras seis eram de Milton Nascimento. Também gravou álbuns autorais por lá.

De volta ao Brasil e convicto de que fama faz mal à saúde, Edu Lobo decidiu fazer o que gostava. Graças ao contrato com um editor, a quem cedeu a exploração dos direitos autorais de sua obra, dedicou-se exclusivamente a compor para cinema, teatro, dança e TV, além de criar arranjos e gravar discos sem palpite de gravadoras. Sobretudo, consolidou parcerias com Ruy Guerra, Tom Jobim, Cacaso, Paulo César Pinheiro, Dori Caymmi e Chico Buarque.

Superlativas


O crítico Zuza Homem de Mello define como “quatro superlativas peças musicais eminentemente brasileiras” as obras O grande circo místico, O corsário do rei, Cambaio e Dança da meia-lua, que reúnem 42 canções de Chico e Edu. Graças a Eric Nepomuceno, nos é permitido ficar lá no canto, quietinhos, só observando os “segredos” dessa genial (e divertida) dupla de obsessivos.

Beatriz ganhou este nome porque, definitivamente, não dava para rimar coisa que prestasse com Agnes, nome da personagem do poema de Jorge de Lima que inspirou O grande circo místico. No estúdio, o “síndico” Tim Maia venceu Edu pelo cansaço. Gravou como quis, contrariando o exigentíssimo autor, uma nota de A bela e a fera. Coube a Ney Matogrosso, anos depois, “resgatar” a partitura.

A obra-prima Valsa brasileira (de Dança da meia-lua) quase enlouqueceu Chico Buarque, incapaz de fazer a letra de uma parte da canção. Nada fluía. Até que ele descobriu: “Aquela música era mesmo para ser instrumental”, revela Nepomuceno. Em Cambaio, surgiu Uma canção inédita – que nada tinha de inédita. Trata-se de “plágio” de uma valsa de Dança da meia-lua, que ganhou outros versos e nova variação para a segunda parte.

Pracinha

A biografia autorizada aborda delicadamente traumas familiares. Edu Lobo só conheceu o pai, o famoso compositor e jornalista Fernando Lobo, quando tinha 10 anos. Desquite, naquela época, era tabu, sobretudo para as mulheres. Dona Carminha deu duro para sustentar o menino, criado em meio a pesado silêncio a respeito de Fernando. O garoto chegou a ser recusado no tradicional colégio carioca Santo Inácio, mas, graças a boas relações da família, conseguiu entrar. Inventou para os colegas que o pai havia morrido na 2ª Guerra Mundial.

Os dois Lobos nunca foram íntimos. Cicatrizes à parte, graças ao prestigiado Fernando o primogênito pôde frequentar casas noturnas proibidas por lei para menores de 21 anos. Foi assim que, em agosto de 1962, o rapazinho de 19 anos cruzou a porta da boate Au Bon Gourmet. O show era de João Gilberto, mas no palco estavam também Tom Jobim e Os Cariocas. Pela primeira vez, o mundo ouviu Garota de Ipanema – e Edu estava lá.

EM BH


Belo Horizonte também faz parte da história de Edu Lobo. Durante muitos anos, ele perdeu o gosto pelo palco. Em 2004, recuperou-se de um aneurisma que quase o matou e voltou a cantar em público, em pequenas apresentações. A “volta triunfal” às grandes plateias se deu em julho de 2012, no Grande Teatro do Palácio das Artes. “Foi muito bom, uma surpresa”, contou ele ao biógrafo Eric Nepomuceno. Acompanhado dos craques Cristovão Bastos (piano), Jurim Moreira (bateria), Carlos Malta (sopro) e Jorge Helder (baixo), ele cantou lindamente, contou casos, divertiu o público com suas alfinetadas nas “modernidades” da cena atual e arrebatou os fãs. Um showman, aquele Edu.

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