Alternância ou alternativa

por 23/08/2014 00:13
Túlio Santos/EM/D.A Press
Túlio Santos/EM/D.A Press (foto: Túlio Santos/EM/D.A Press )
João Paulo



Há uma falácia em curso na campanha eleitoral que agora se tornou oficial: a ideia que a alternância no poder é, em si, um valor. Não é. Como princípio, a alternância de poder é um dos fundamentos da democracia. Ela aponta a possibilidade de que um projeto que perde o respaldo e a confiança popular seja substituído por outro capaz de convencer com melhores propósitos. Por trás da ideia de alternância, há uma crença saudável no poder da razão.

No entanto, o que se vê em debate hoje é a destituição do sentido da verdade em nome dos interesses particulares. Independentemente de argumentos, mudar se torna um valor. Em outras palavras, a alternância é a alternativa. O risco de tal postura é criar um jogo antidemocrático, como se o governo fosse a encarnação do Estado e, com isso, este precisasse ser desmontado a cada período. Nos parâmetros convencionais da democracia moderna, a máquina toca os projetos definidos pela sociedade.

Há dois projetos em jogo. E que precisam ser compreendidos em suas distinções e, algumas vezes, sutilezas. O caso das políticas sociais é um bom exemplo. Para o atual governo, trata-se de uma política que visa ao mesmo tempo diminuir a pobreza e distribuir renda. A oposição, mesmo quando defende as práticas compensatórias, concentra-se na ideia de focalização nos pobres. No primeiro caso, há a universalização de direitos de cidadania; no segundo, mero distributivismo.

A mesmo lógica pode ser utilizada para o caso do trabalho e dos salários. Para os defensores do modelo desenvolvimentista, o aumento do salário mínimo e a garantia de condições de trabalho são o núcleo da política. Para os cultores do liberalismo, o aumento do salário expande os ganhos do trabalho contra os interesses do rentismo, e a flexibilização das relações trabalhistas é uma garantia a mais para os empregadores e empresários. No primeiro caso, a ideia é transferir renda e aumentar os empregos; no segundo, o controle das relações trabalhistas e a valorização do setor financeiro.

Seguindo-se esse método, é possível analisar ponto a ponto as propostas que estão em disputa no cenário eleitoral. É claro que nenhum candidato, mesmo ancorado em teorias econômicas consensuais em grande parte dos analistas da imprensa e do mercado, vai defender o aumento de juros da dívida pública, a garantia de superávit primário em desfavor das políticas sociais, a redução de salários e benefícios, o corte de direitos trabalhistas e o arrocho salarial. Por isso o discurso da alternância precisa ser visto como ele é: a contraposição a um determinado estado de coisas.

E que coisas são essas? Os dois governos Lula e o primeiro mandato de Dilma Rousseff estabeleceram uma base de resultados que podem ser contestados (como não sendo os melhores ou mais eficazes), mas não podem ser negados (sob o risco de perda de terreno democrático de debate a partir de fatos). Em curtas palavras: o Brasil melhorou. A renda foi distribuída, a pobreza diminuiu, as políticas sociais criaram um novo patamar de qualidade de vida para milhões de pessoas, parcela significativa da população foi incluída no consumo, o mercado de massas foi incentivado, o país atravessou crises sem desemprego, o salário melhorou e a inflação – com todos os alarmes – está sob controle.

Mal-estar


Por que, então, há uma sensação tão forte de que tudo vai mal? Em primeiro lugar, pelo simples fato de que tem gente perdendo. Deixada ao sabor do vento, a economia no capitalismo clássico tende a concentrar renda e aumentar a desigualdade. Essa situação parecia completamente afastada desde que as mais ricas nações do mundo passaram a intervir na economia para garantir o mínimo de qualidade de vida de toda a população. Foi a era do chamado Estado de bem-estar social, sepultado pela recrudescência do ultraliberalismo e defesa do Estado mínimo. O chamado neoliberalismo devolveu a ausência de escrúpulos à humanidade.

Por isso, toda política que avance contra o ganho do capital vai sofrer oposição determinada dos think tanks liberais e de seus sucedâneos na imprensa. A forma como a opinião pública brasileira vem sendo informada em termos de economia chega a ser patética: há uma valorização moral da competição, exatamente o único terreno no qual o mais ferrenho liberal sempre defendeu a ação do Estado. A noção de meritocracia deixou o terreno contido das organizações para ser um valor em si numa sociedade marcada pelas desigualdades. Em outras palavras, há um indisfarçado apetite da reação em gerar confronto social e, mais ainda, exclusão.

Como afirma Thomas Piketty no pouco lido e muito citado O capital no século XXI: “A experiência histórica indica que desigualdades de fortuna tão desmesuradas não têm grande coisa a ver com o espírito empreendedor e não têm nenhuma utilidade para o crescimento”. Este é o ponto: como crescer e para quem.

Outra contradição que emerge nesse terreno tem sido a demonização de todos os defensores do controle do crescimento, sejam eles de natureza ecológica ou política. Tudo que de alguma forma se opõe ao crescimento dos ganhos econômicos é visto como entrave ao desenvolvimento, quando muitas vezes são exatamente expressão de desenvolvimento humano. É o caso da sustentabilidade ambiental, das propostas de contenção do agronegócio em favor de modelos de distribuição de terras e diversificação da produção, de cuidado na forma de desenvolver a matriz energética e até na defesa de interesses dos povos indígenas.

Outro foco de insatisfação se localiza na praga da corrupção, que precisa ser combatida sem tréguas, com rígidos instrumentos públicos e mudança na cultura patrimonialista brasileira, que permitiu por séculos que a coisa pública fosse tomada como bem pessoal ou a seu interesse.

A comparação entre os dois projetos em jogo deve ser feita ainda com o senso histórico de um país que se acostumou covardemente com a desigualdade. O povo brasileiro começa a ficar visível, o que incomoda quem sempre gostou de área VIP e casa-grande.

A quem incomoda o aeroporto cheio, o povo no shopping, médicos cubanos atendendo 50 milhões de pessoas que nunca tiveram cuidados de saúde e os jovens pobres na universidade? Possivelmente a sombra de uma meritocracia real que se avizinha e que vai tirar o lugar natural de muito playboy descansado.

Essa alternância, a perspectiva da igualdade real, está demorando até demais.



 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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