Demandas do amor

Alexandre Martins e Débora Ferraz, vencedores do Prêmio Sesc de Literatura, lançam coletânea de contos e romance psicológico

por 23/08/2014 00:13
Gladys Branco/Divulgação
Gladys Branco/Divulgação (foto: Gladys Branco/Divulgação)
André di Bernardi Batista Mendes



Dois bons livros acabam de chegar às livrarias. Parafilias, de Alexandre Marques Rodrigues, e Enquanto Deus não está olhando, de Débora Ferraz, vencedores do Prêmio Sesc de Literatura 2014 nas categorias conto e romance, respectivamente. Alexandre Marques nasceu em 1979, na cidade de Santos, litoral de São Paulo, onde vive. É formado em psicologia e mantém desde 2010 o blog Ler até escrever, no qual registra impressões sobre livros. Débora Ferraz nasceu em Serra Talhada (PE) e é formada em comunicação social. Escreveu seu primeiro livro de contos, Os anjos, aos 13 anos, e o publicou aos 16, de forma independente. Tem textos editados em várias revistas, como a prestigiada Cult. Os prêmios não foram dados em vão.

Em Parafilias, Alexandre Marques apresenta uma unidade temática clara: o erotismo. Alexandre é dono de sutilezas, mas, sem grandes sustos, ele escreve sem pudores. Ele não tem receio de ver e dizer. Este bom autor atiça, acaricia as palavras, cativa, aborda, envolve, seduz, até conseguir o primeiro beijo, o começo de tudo. Até quando descreve com minúcias o ato sexual, Alexandre o faz com boa armas, com o suporte imprescindível de um certo estilo. E com talento, é claro, que sem ele tudo desanda em desencontro e desprazer. Alexandre Marques não deixa brechas para explicações. Ele monta o seu roteiro de idas e vindas, joga, empurra – delicadamente – o leitor neste tubilhão, e ele que se vire.

Com razões, os contos de Alexandre, nestas suas parafilias (termo que remete a um distúrbio psíquico, que se caracteriza pela preferência ou obsessão por práticas sexuais socialmente não aceitas, como a pedofilia, o sadomasoquismo, o exibicionismo etc.), são curtos e abordam temas espinhosos, como a solidão urbana, as obsessões, os vícios, as perversões do nosso cotidiano, do nosso dia a dia. As histórias, neste contexto, cruzam-se revelando um vazio que acompanha cada personagem, até o limite das coisas que se encontram quase irremediavelmente solitárias. Livros adivinham desejos. Livros podem ser “pássaros que querem se soltar de todas as mãos para saír voando pelo quarto”. É a vida, com as suas desconexões, a sua inutilidade. Algumas pessoas ampliam o que há de céu nos encontros, nas camas, quando o azul parece um erro.

Como são inúteis os nomes, os olhos, o vento, a macieira, as árvores que se transformam em páginas, os livros e os títulos dos livros. Alexandre atira no alvo, certeiro: ele abre Parafilias com o conto “Livros” e continua com “Palavras”; “Irreversíveis”; “A mulher que disse Nietzsche”; “Seios”; “Substantivos”; “Esboços…”. Existem fios que unem vocábulos, que unem autor e leitor. Somos todos, sem medidas, um pouco destrambelhados e parafílicos.

O sexo, contudo, ainda pode ser, ainda carrega doses de lirismo e poesia. O sexo, o ato em si, às vezes promove um precário silêncio antes da tempestade. “Quando as luzes berram, todas acesas.”. Entram em cena um camareiro de motel que precisa limpar as imundícies que os outros fizeram e que foge de sua vida medíocre lendo Tchekhov, Dostoiévski e Górki (por que os russos?); um garçom tarado; um cineasta que quer fazer sua namorada gozar; uma mulher que pede ao amante que leia os livros do marido para se excitar; um escritor com bloqueio criativo que faz uma extensa lista de palavras aleatórias (canela, parafuso, compensado, porta, girafa, Isaac, cadeia, boceta, punheta) enquanto é obrigado a amar a mulher que lhe paga as contas; e adolescentes que se excitam vendo os quadros de Schiele. Por vezes o sexo gera esquecimento. Algumas pessoas vivem como se doessem.

Todo bom livro provoca alterações no corpo e na cabeça de quem lê. E com a literatura erótica a situação não é nada diferente. Principalmente quando a obra agrega, dentro das palavras, sabores inusitados. Uma quentura a mais, algumas vontades, um princípio de abismos, de vertigens combinadas, aleatórias, feitas de alegria e lascívia. Um bom livro é lúbrico, quando sugere e incita umidades e arrepios. A boa sacanagem empresta um tanto de brilho à literatura, que por sua vez provoca reflexões e descobertas. A mensagem é curta: nada pode estar, nada pode ser para o além, nada é e nada vinga distante do amor.

Alexandre Marques mostra intimidade com a vida, com o cru que a vida é. Alexandre Marques é sacana, libertino, devasso, sim, mas o danado não provoca qualquer tipo de repulsa. Agora sei, o corpo pensa quando goza. E a alma adivinha. Agora sei, é que por trás de tantas sombras, por trás de tanto descaminho, dentro de tanta solidão, Alexandre nada mais faz que contar pequenas-grandes histórias daquele sempre amor.



Famílias


Já em Enquanto Deus não está olhando, Débora Ferraz mostra que chegou com personalidade e que tem fôlego para ficar. O livro narra a história de Érica, jovem artista plástica em busca do pai, que fugiu do hospital onde estava internado. A moça procura possíveis rastros que ele possa ter deixado e, a partir de pequenas memórias, tenta entender esta conturbada relação familiar. Ela tenta reconstruir ou inaugurar algo latente. Certas coisas, certas forças incomodam para o além dos dias, para o além das noites de sono e paz.

Débora monta um interessante quebra-cabeças, num fluxo de pensamento que prende o leitor desde as primeiras linhas. Pequenas histórias se misturam a recordações e sonhos que vão revelando, aos poucos, a solidão e o desamparo da protagonista. A leitura do livro já valeria pelo talento que Débora tem de criar um clima de suspense ao longo dos acontecimentos.

Nada é o que parece ser. Mas Débora deixa uma pulga atrás das orelhas. Tudo é como se mostra. Ou, ainda, tudo tenta se mostrar da melhor maneira que pode. O complicado é a cabeça, o complicado é que existem os olhos, as ideias das pessoas. Cada farol auxilia um barco, um solitário barco que tenta o seu périplo, que navega entre pedras e tempestades. Como disse Luiz Ruffato, “Enquanto Deus não está olhando é um romance que coloca Débora Ferraz na seleta estante dos autores que merecem com que lhes prestemos atenção”.


PARAFILIAS
. De Alexandre Marques Rodrigues
. Editora Record, 160 páginas, R$ 25


ENQUANTO DEUS NÃO ESTÁ OLHANDO

. De Débora Ferraz
. Editora Record, 368 páginas, R$ 40

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