Ecologizar os bancos

Instituição financeira anunciada pelos países que formam o Brics tem a oportunidade de apresentar ao mundo nova forma de direcionamento de recursos, levando-se em conta a pegada ecológica per capita

por 23/08/2014 00:13
Biju Boro/AFP
Biju Boro/AFP (foto: Biju Boro/AFP)
Maurício Andrés Ribeiro



Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul constituem o Brics, o grupo dos cinco maiores países emergentes. Juntos, esses cinco países têm 40% da população mundial e cobrem 23% das terras do planeta.

Em julho, eles se reuniram em Fortaleza e decidiram criar o banco de desenvolvimento do Brics, um projeto unificador entre esses cinco países.

Bancos de desenvolvimento direcionam recursos para investimentos e canalizam fluxos de capital para os projetos aprovados. Assim, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), entre outros, concederam crédito para projetos necessários. Entretanto, foram alvo de críticas por parte de organizações da sociedade por ter financiado projetos social e ambientalmente questionáveis.

Os Princípios do Equador, propostos em 2003 pela Corporação Financeira Internacional (IFC), vinculada ao Banco Mundial, estabeleceram diretrizes sociais e ambientais para as instituições bancárias. Naquele mesmo ano, a Declaração de Collevecchio, apoiada por organizações da sociedade civil, ressaltou a importância de as instituições financeiras assumirem compromissos com a prevenção de impactos das atividades que financiam, com a transparência das informações, com a prestação de contas à sociedade. Ressaltou-se a necessidade de se repensar a missão dos bancos e a urgência de que eles renunciem a oportunidades de negócios que sejam social ou ambientalmente destrutivas.

Bancos de desenvolvimento precisam ter missão, mandato e orientação política claramente definidos pelas sociedades que os instituíram. Quando priorizam certos projetos, deixam de focalizar outros, havendo custos de oportunidade nessas decisões.

Seria desejável que o banco do Brics inovasse em suas concepções, práticas, métodos, bem como no uso de indicadores. Um dos indicadores relevantes para serem aplicados em suas operações é a pegada ecológica, que estima a quantidade de área biologicamente produtiva para agricultura, pastagens, floresta e pesca que está disponível para atender às necessidades da humanidade. Ela é expressa em hectares global per capita (hag/pc). A pegada mundial é de 2,7hag/pc, o espaço médio necessário para sustentar cada um dos 7 bilhões de indivíduos no planeta.

Um brasileiro médio tem a pegada ecológica de 2,9hag/pc, um pouco acima da média global; um chinês, 2,2; um russo, 4,4; o sul-africano, 2,6hag/pc.O indiano médio tem uma pegada ecológica de 0,9hag/pc. Entre os cinco Brics, o russo tem uma pesada pegada ecológica, enquanto o indiano tem uma leve pegada per capita média. O indiano médio tem uma pegada ecológica nove vezes mais leve que o cidadão dos EUA, três vezes mais leve do que a pegada de um brasileiro e do que a pegada global.

Leveza

A Índia tem uma leve pegada per capita porque tem uma grande população com levíssima pegada. Em parte, a leveza da pegada ecológica da Índia relaciona-se à capacidade da sociedade indiana para satisfazer as necessidades materiais com o mínimo de pressão sobre o meio ambiente. Hábitos frugais de vida, associados a uma organização territorial descentralizada nas milhares de aldeias, e combinados com o ecodesign de famílias e comunidades estendidas são parte da vida de milhões de pessoas na Índia.

Tais características reduzem significativamente o consumo de recursos naturais e ajudam a explicar a sua pegada leve de 0,9hag/pc. Ela resulta apenas em parte de privação material das coisas básicas necessárias para uma vida digna, tais como alimentos, água, energia, saneamento, habitação, educação e saúde. Dessa forma, o indiano médio tem um crédito ecológico, pois ameaça muito pouco a sustentabilidade global.

Tal crédito poderia ser usado para se investir em infraestrutura, resolver problemas de saneamento e em projetos de adaptaçao às mudanças climáticas e fazer outras melhorias para beneficiar a parte da população que sofre privações, sem agravar a ameaça à sustentabilidade global. Quem aumenta o peso da pegada ecológica indiana são os 200 milhões de pessoas de classe média, com aspirações e hábitos de vida consumistas. Caso venha a ser usado sem critério de justiça social, esse crédito ecológico poderia ampliar desigualdades ao aumentar o consumo dos indianos mais abastados.

Indivíduos que têm uma pegada ecológica leve pouco contribuem para a destruição ambiental. Aqueles que têm uma pegada mais pesada ameaçam a sustentabilidade.

A espécie humana já domesticou animais e usou sua força. Já domesticou vegetais e se alimentou com eles. Já canalizou a força das águas para produzir energia, para matar sua sede e irrigar as plantações. Colocou a seu serviço as energias de todo tipo, fósseis e renováveis.

No contexto da crise ecológica e climática planetária, é um desafio ecologizar o capital, pois, caso seja deixado livre e sem regulação, sua força, como a das águas, pode ser destrutiva. É preciso colocar a força do capital a serviço do bem-estar humano e da saúde ambiental. A aplicação do conceito de pegada ecológica per capita transformaria o modo como se aborda o tema das desigualdades e pode apontar na direção de um nivelamento mundial de padrões de consumo.



Igualdade

Se almejarmos um mundo menos injusto e mais sustentável, a pegada ecológica per capita deveria ser leve e igual para todos os habitantes da Terra. Caberia aos bancos aplicar os fluxos de capital em projetos que equalizem as pegadas ecológicas per capita. Assim, por exemplo, o banco do Brics poderia inovar na utilização de indicadores de sustentabilidade para orientar suas operações e direcionar suas ações no sentido de reduzir injustiças equalizando as pegadas ecológicas per capita dos habitantes dos países que o criaram.

O banco do Brics poderia apoiar os russos em atividades que visassem tornar sua pegada ecológica mais leve; auxiliar os indianos a ter melhor qualidade de vida e ao mesmo tempo reduzir desigualdades e manter leve a sua pegada ecológica; canalizar recursos para projetos que tornem mais leve a pegada ecológica per capita de brasileiros, chineses e sul-africanos, ao mesmo tempo em que aumentem seu bem-estar.

O banco do Brics poderia atuar como um laboratório para experimentar esse modo de lidar com o capital, realizando suas operações de crédito de forma sintonizada com uma visão ecologizada. Ele opera com US$ 50 bilhões, recursos modestos se comparados com os trilhões de dólares do capital circulante no mundo.

Entretanto, essa poderia ser uma oportunidade para testar um novo modo de relacionamento com o capital. Sendo exitoso, poderia servir como exemplo e referência para regular os fluxos de capitais, colocando-os a serviço do bem-estar e da saúde humana e ambiental.

. Maurício Andrés Ribeiro é autor dos livros Ecologizar, Tesouros da Índia e Meio ambiente & evolução humana.

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