Cultura de massa no Brasil

por 16/08/2014 00:13
Em entrevista ao Pensar, o professor e ensaísta Rodrigo Duarte analisa a presença da indústria cultural no Brasil e defende o conceito de “construto estético-social”, proposto por ele para atualizar a reflexão adorniana e dar conta das obras que vão além da mera reprodução ideológica, e que aliam ao mesmo tempo criatividade e propósitos de natureza ética e política. Para o autor de Varia aesthetica, o hip-hop seria um bom exemplo desse modelo. Duarte avalia ainda a presença de novos pensadores no campo da estética, destacando as obras de Vilém Flusser e Arthur Danto.
 
Qual é a característica mais marcante do debate sobre indústria cultural no Brasil, tanto na academia como em outros espaços de saber?
Há muito tempo procuro mostrar que a discussão sobre indústria cultural não é mais uma moda intelectual europeia e norte-americana, importada para o Brasil. Nosso país tem uma história de cultura de massas ocorrida no máximo duas décadas depois que essa surgiu nos países ditos desenvolvidos, pois, desde 1930, tivemos rádio comercial e indústria cinematográfica, sendo que o início das transmissões de televisão em 1950 foi pioneiro em relação a muitos países mais industrializados do que o Brasil. O que ocorre é que esse desenvolvimento paralelo gerou um modelo de indústria cultural muito específico e que está longe de ser conhecido em todos os seus aspectos. Isso por si só já justifica a existência da discussão sobre indústria cultural no Brasil, sendo que há, naturalmente, outras justificativas importantes. De qualquer modo, esse debate existe no Brasil desde meados da década de 1990, ainda que mais circunscrito aos meios acadêmicos, principalmente nas áreas da filosofia, da educação e das artes.

A cultura de massa no Brasil é um campo de grande força social e até mesmo criativa. Como você avalia setores como a teledramaturgia e a música popular, inspirados ao mesmo tempo pela arte e pelas estratégias de mercado?
Alguns fenômenos da cultura de massa no Brasil constituem a mencionada peculiaridade desse setor em nosso país. Mas é preciso fazer certas distinções: enquanto na música popular sempre houve exemplos de grande qualidade criativa, com raízes genuinamente populares, enriquecidas com a vivência dos centros urbanos e com a necessidade de expressão de inconformidade com o status quo, a telenovela, que ganhou o mundo como um produto de exportação da indústria cultural brasileira, no meu entender, nunca atingiu uma qualidade verdadeiramente artística, apresentando construtos estereotipados, com sérios defeitos do ponto de vista da narrativa, ocasionados principalmente pela flutuação na audiência, e não num desenrolar-se tendo em vista a totalidade da obra, como no caso da narrativa literária.

A recuperação do pensamento de Vilém Flusser tem renovado os estudos sobre linguagem e a estética no Brasil. Como Flusser pode nos situar melhor nesse cenário?
De fato, a meu ver, Vilém Flusser pode ter um papel importante nesse processo de compreensão critica da cultura de massas no Brasil, já que, pelo menos em algumas de suas obras, ele se mostra um crítico ferrenho desse tipo de cultura. Por outro lado, tendo residido em nosso país por mais de 30 anos, ele se familiarizou tanto com as mazelas quanto com o enorme potencial criativo da cultura brasileira. Além disso, o seu jeito idiossincrásico de discutir as questões não raro provoca debates acalorados, o que é sempre positivo.

A que interesses atendem aqueles que, a cada estação, alardeiam o fim da arte (da história, das ideologias, da política)?

É necessário distinguir, também nesses temas “crepusculares”, as propostas sérias que têm conteúdo filosófico daquelas oriundas de pessoas que simplesmente querem aparecer. Por exemplo, Hegel estava correto ao, partindo de pressupostos implícitos do seu sistema filosófico, anunciar o fim da arte, ressalvando que esse não significava o fim da produção de obras de arte, mas da relevância histórica desse âmbito da cultura. Quando vemos que, no domínio da indústria cultural, a arte é tratada, habitualmente, como algo já passado e desprovido de significado, podemos pensar que, pelo menos sob certo ponto de vista, Hegel não estava totalmente errado. É interessante ainda observar que esse filosofema de Hegel influenciou as mais diferentes tendências da estética contemporânea, como a ontologia fundamental de Heidegger, a estética crítica de Adorno, ou mesmo uma filosofia da arte de origem analítica como a de Arthur Danto.

Algumas expressões de cultura popular, de certa forma, exigem uma atualização dos conceitos de Adorno. Como você avaliaria, por exemplo, manifestações de grande carga estética e política, como o hip-hop, por exemplo?

A existência de fenômenos na cultura popular urbana como o hip-hop, que não se encaixa em qualquer das três figuras com as quais Adorno qualificou as modalidades de cultura – cultura genuinamente popular, mercadoria cultural e arte erudita –, tendo características de todas elas, remete à necessidade de repensar alguns parâmetros da critica “clássica” à indústria cultural. Mas, longe de invalidar essa crítica como um todo, a presença desses fenômenos deve levar à criação de novos conceitos, como, por exemplo, o que propus, intitulado “construto estético-social”, no qual o elemento radicalmente crítico à sociedade é menos integrado à linguagem estética propriamente dita, mas não deixa de existir. Essa postura, aliada à opção pela linguagem estética no posicionamento ético-político, torna esses fenômenos muito relevantes em termos de uma perspectiva transformadora da realidade. O hip-hop é um exemplo privilegiado desses “construtos estético-sociais”.

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