Sem favor algum, mas com base exclusiva no mérito de sua profunda acuidade em analisar com isenção e conhecimento a obra literária proveniente de Portugal. Ajunte-se a essa condição diferenciada e perfeitamente comprovável em todos os ensaios e recensões do livro a consistente erudição com a qual transita o autor opiniões bem-urdidas e interessantes sobre o legado literário português, que é amplo, heterogêneo e específico no contexto europeu de projeção universal.
Assim, tem-se uma leitura abrangente, escrita “com rigor técnico e objetivos hermenêuticos variados”, que inclui Camões e Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Eduardo Pitta, João de Melo, Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Frederico Lourenço, além de muitos outros autores lusos distinguidos em comentários e resenhas que identificam com seus exemplos a rica e emblemática produção portuguesa.
Há que se distinguir no corpus selecionado para abranger as reflexões críticas a elegância estilística deste autor vivenciado em linguagem também como ficcionista reconhecido. Somente com amplo conhecimento da cultura lusitana, aliado a uma vivência in loco realizada quando estudou para seu doutorado em Lisboa, além de dedicação in totum à causa literária portuguesa, poderia fazer lograr um livro imprescindível em significação e importância tal como resultou nesse Arquivo e rota das sombras.
Esse conhecimento, por sua vez, é demonstrado pelo autor no que tem de especificidade a obra portuguesa em prosa e verso, exigindo amiúde incursões na história, linguística, política e leituras múltiplas que sedimentam as pesquisas. Por isso, os textos têm fluidez inteligível, leveza com profundidade, contextos muito bem caracterizados em função de análises que privilegiam a contundência crítica e o ostinato rigore de sua elaboração profissional, enriquecendo muito a visão leiga ou especializada dos leitores mais exigentes.
O tratamento perspicaz e competente de Edgard Pereira conferido em Arquivo e rota das sombras traz, inicialmente, no ensaio “Camões & Pessoa: dois noturnos”, o conhecimento de que o poeta estreou literariamente com um texto crítico sobre a cultura portuguesa, isto em 1912. O ensaio contudo trata especificamente da criação pessoana do heterônimo Ricardo Reis, "de feição helenizante", em condição dialógica com Camões.
Em “Viagens na minha terra: ciladas da representação”, mostra o autor que Almeida Garrett "promove uma surpreendente desarrumação dos princípios norteadores do romance tradicional", enfatizando que o português participou efetivamente dos conflitos entre liberais e absolutistas na primeira metade do século 19, como integrante das tropas de D. Pedro, seu aprendizado para a "memória histórica vivenciada", conforme referida por Homi Bhabha, fato que Edgard Pereira associa à independência do Brasil, em 1822.
A sombra de Fradique Mendes projeta-se numa "tentativa malsucedida de heterônimo" de Eça de Queiroz, em obra situada entre a biografia e a ficção, ensejando um grande romance (A correspondência de Fradique Mendes), que rompe com o naturalismo e vai de encontro à modernidade. O ensaísta desdobra o assunto noutro ensaio em que põe em evidência, também naquele romance, as conexões entre o discurso literário e o discurso cultural, pelas analogias existentes entre "a forma romanesca e a estrutura social", (...) tendo-se em conta "a estruturação homóloga das relações humanas e sua representação ficcional." É destacado, nesse tempo, o interesse de Eça de Queiroz pelas culturas periféricas e o caráter universalista da intelectualidade do autor também de Os Maias e A cidade e as serras, entre outras grandes obras.
A poesia de Camilo Pessanha é analisada no ensaio “O conflito existencial em Clepsidra”, por apresentar síntese das ideias fundamentais e das principais coordenadas formais das poéticas finisseculares, pondo em foco, nessa poesia, as pulsões estéticas do Decadentismo, Impressionismo e do Simbolismo. A importância do poeta está em ter elaborado "um texto à deriva, em movimento incessante, sem rumo, solto, incapturável, por maiores sejam as pretensões da crítica", ressalta o ensaísta. O espelhamento narrativo das personagens, "numa escrita excessivamente decorada de apelos sensoriais, (...) que leva o leitor a tentar decifrar uma construção sofisticada de linguagem, permeada de detalhes preciosos e enigmáticos", justifica para o leitor a análise da novela A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro.
Labirinto
José Saramago tem analisado o romance O ano da morte de Ricardo Reis, no qual o Nobel reelabora a ficção dos heterônimos pessoanos. Saramago, conforme pontua o ensaísta, faz uma leitura da instauração da gênese da múltipla alteridade poética e do fingimento ao distinguir a "sedução do labirinto" que é a produção dos heterônimos de Fernando Pessoa (ele mesmo, Ricardo Reis, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos) e sua influência na cultura portuguesa. Tudo para levar o leitor a observar que em se tratando de Pessoa é dada a "ênfase na ideia de arte como jogo, diferença, corte, vertigem, arte como labirinto". Já para o "estudioso de símbolos", a obra de Saramago conduz ao discernimento de analogias, como a do distanciamento da vida e a condição de desgarrado da pátria de Ricardo Reis, "numa clara insinuação à dúbia relação de F. Pessoa com o Estado Novo português".
A expressão homoerótica está presente também na literatura portugaysa e a obra de Eugênio de Andrade é analisada, destacando-se por a sexualidade possibilitar "o contato com o limite e a transgressão, sua estreita relação com a poesia, linguagem complexa ancorada no simbólico e na subjetividade", tendendo por isso "a direcionar-se quase sempre numa vertente libertária".
Sob a afirmação de que "por mais que se posicione como não-saber, a literatura não deixa de se constituir em uma intensa e fulgurante forma de saber", os Contos do mal errante, de Maria Gabriela Llansol, são analisados no foco do diálogo entre a revolução coperniana e o discurso da autora, ou seja, nas dobras do saber, em conformidade à teoria de Foucault. Numa reflexão ensaística em que é aprofundado o conhecimento sobre as relações humanas, Llansol põe em cena de novo a questão do desvio sexual na literatura portuguesa.
O jovem poeta Antonio Franco Alexandre visitou o Nordeste brasileiro, e fascinado pelo paradisíaco tropical escreveu Visitação, obra analisada por Edgard Pereira "numa atmosfera cultural fortemente permeada pelo pós-colonialismo e pós-modernidade" e pelo arrebatamento no "registro e invenção de uma região marcada pela exuberância, primitivismo e mistura de sensações".
Ao admitir que a relação entre poesia e desconstrução da subjetividade é um dos parâmetros da literatura moderna, o ensaísta informa também que provém da ideia rimbaudiana de que o eu é um outro, donde a arte de Camões, mas também de Helder Moura Pereira "minar a soberania do eu, destruir os pressupostos da personalidade poética (fidelidade, sinceridade, coerência), jogar suspeição sobre o espaço subjetivo", assim como hoje a ideia de subjetividade possibilita abertura "para a alteridade, a pluralidade e a diferença", cuja flexibilidade do pensamento e das pulsões leva, literariamente, "à diversidade sexual, étnica e cultural", transformada em "mútuo consentimento", como é feita a análise do livro lançado por Helder em Lisboa, em 2005. "Cantor do vazio", a reflexão do poeta, segundo o ensaísta, faz com que o sujeito poético assuma "uma postura niilista como forma de resistência", além de Helder dar ênfase à metalinguagem.
São ainda analisados o romancista Vergílio Ferreira, que projeta "o fascínio do silêncio e da escrita"; o poeta Gastão Cruz, que "fez parte de projeto polêmico de valorização da fragmentação sintática e de distanciamento do sujeito na poesia"; Joaquim Manuel Magalhães, "um dos nomes tutelares da poesia portuguesa" através sobretudo de duas recorrências: a consciência da escrita e do sujeito, e da sexualidade vivida mais como prática do que como paixão"; João de Melo, "pela desesperada busca da identidade nacional", autor açoriano reconhecido desde 1988 pelo romance Gente feliz com lágrimas; o escritor moçambicano Eduardo Pitta, que dá um "mergulho na repressão colonial e na demanda da sexualidade como autor de trabalho pioneiro no âmbito dos gay studies em Portugal".
E ainda Miguel Serras Pereira, "uma voz poética original", com o contexto homoerótico libertário sem escamotear a ambiguidade latente entre amor e morte; Luís Filipe de Castro Mendes, "por suas pesquisas de linguagem, ritmo e musicalidade incentivadas por Verlaine" e com interlocução com os poetas do fim do século 20; Fernando Luís, pela revitalização da poesia nos anos de 1970, mormente com o grupo Cartucho, que recusa parâmetros estéticos e questiona: "Contra o quê se tem de fazer a poesia?"; Fernando Pinto do Amaral, que analisa a atual produção poética portuguesa e dá sua contribuição diferenciada também como poeta; Frederico Lourenço, autor de "um relato lucidamente ridículo e austeramente assético em relação às cenas de sexo".
Dos clássicos aos pós-modernos portugueses, Arquivo e rota das sombras amplia com competência a visibilidade leitoral para a literatura de Portugal e consagra Edgard Pereira como um dos mais lúcidos intérpretes críticos dessa literatura.
. Márcio Almeida é escritor e crítico. E-mail: marcioalmeidas@hotmail.com
ARQUIVO E ROTA DAS SOMBRAS – ENSAIOS E RECENSÕES DE LITERATURA PORTUGUESA
. De Edgard Pereira
. Editora Aldeiabook, 146 páginas