Desafios da estética

Rodrigo Duarte lança hoje em Belo Horizonte o livro Varia aesthetica, conjunto de reflexões sobre o novo cenário da arte e da cultura na sociedade contemporânea

por 16/08/2014 00:13
Arquivo Pessoal
None (foto: Arquivo Pessoal)
João Paulo


Arte e sociedade. Essa dupla, nada pacífica, ocupa a reflexão de Rodrigo Duarte há muitos anos. Um dos mais importantes pensadores da estética filosófica no Brasil, especialista no pensamento de Theodor Adorno e Max Horkheimer, Duarte é professor de filosofia na UFMG e autor de obra técnica especializada, sem deixar de participar como intelectual público de debates sobre o tema em vários fóruns, além de contribuir com publicações para o público não especializado.

Ele lança hoje, em Belo Horizonte, a coletânea de ensaios Varia aesthetica, que reúne artigos publicados em revistas especializadas nos últimos anos. O tema, mais uma vez, é a complexa relação entre arte e sociedade. Se durante muitos anos bastava sacar conceitos como indústria cultural ou apontar a força dissolvente do mercado para sedimentar a crítica no campo das artes e da cultura, hoje a situação é ao mesmo tempo mais profunda e exigente em termos de reflexão.

O livro de Rodrigo Duarte é um esforço nessa direção. Mesmo tendo sido construído ao longo dos últimos anos, para responder a demandas específicas, são textos que procuram trazer novas luzes a questões relacionadas à estética e à arte contemporânea, no novo contexto da pós-globalização. Fenômenos complexos exigem respostas igualmente profundas. Sem perder o interesse em dialogar com o leitor, Rodrigo Duarte traz para a cena novos argumentos e elementos hauridos no estudo da obra de novos pensadores da estética filosófica, como Vilém Flusser e Arthur Danto

Em entrevista ao Pensar, Duarte recupera a reflexão em torno da indústria cultural, analisa o potencial crítico da arte num tempo de esmaecimento dos propósitos ético-políticos, avalia as características da cultura de massas no Brasil, lança reflexões sobre o cenário digital e propõe um novo conceito, o de “construto estético-social”, para se aproximar de ricas e promissoras manifestações culturais urbanas, como o hip-hop.


Como foi seu caminho na filosofia e o que o levou a se dedicar à questão estética?
O meu percurso na filosofia foi tortuoso, pois, quando finalmente entrei nesse curso de graduação, eu já tinha cumprido mais da metade de um curso de engenharia eletrônica, mas me convenci, na época, de que com a filosofia eu me realizaria mais e talvez pudesse dar uma contribuição maior do que com a engenharia. Como eu sempre me interessei por música, esse interesse me aproximou da filosofia de Theodor Adorno – autor da mais influente filosofia da música produzida até hoje. Da filosofia adorniana da musica para a estética em geral, foi só mais um passo.

Seu novo livro traz ensaios sobre arte e sociedade. Como se dá essa relação no mundo atual?
Desde que terminei o meu doutorado em filosofia na Alemanha, em 1990, me pareceu que a investigação da relação entre arte e sociedade é cada vez mais relevante, dado o predomínio de elementos estéticos nos projetos de dominação atualmente em curso, em todo o mundo. Sendo assim, tornou-se cada vez mais claro para mim que a tarefa desmistificadora da filosofia deve obrigatoriamente passar pela familiaridade com a estética.

A ideia de indústria cultural há muito tempo deixou de ser crítica para se traduzir para as pessoas como algo natural. A indústria cultural ainda pode ser entendida como algo ligado a projetos de dominação ideológica?
Concordo que a expressão “indústria cultural” já não provoca o verdadeiro escândalo que ela causou ao surgir, no início da década de 1940, já que, implicitamente, esse empreendimento se tornou, de lá para cá, uma espécie de “segunda natureza”, ou seja, algo tão sedimentado que não se questiona mais de onde vem e para onde vai. Por outro lado, a expressão é tão forte que conserva, por si só, algum conteúdo crítico. Tanto é assim que aqueles que não querem se comprometer com qualquer ponto de vista contrário ao status quo preferem usar outras expressões para designar esse fenômeno, tais como “cultura de massas” ou coisa que o valha.

Num tempo de enfraquecimento da política tradicional, a arte pode ser o local de exercício do contrapoder e da crítica social?
Sem dúvida alguma, qualquer projeto político verdadeiramente transformador da sociedade deve passar pela proximidade a uma linguagem de caráter estético e, embora atualmente o âmbito estético seja considerado muito mais amplo do que o da arte, esta continua sendo um balizamento importante para identificar propostas verdadeiras, distinguindo-as de ofertas meramente estratégicas (em termos econômicos e ético-políticos), como o são, por exemplo, as da indústria cultural. A pessoa que adquire a capacidade de avaliar por si própria aquilo que os sentidos recebem do exterior é alguém muito mais dificilmente manipulável; essa é uma das razões pelas quais um ponto de vista verdadeiramente estético é necessariamente político e, por extensão, crítico ao status quo.

Como avaliar o potencial mobilizador da arte num cenário em que o mercado dá as cartas de forma tão dominadora?
A influência do mercado é um fator inegável, mas, mesmo onde ela é dissimulada (apesar de sempre muito forte), podem-se distinguir construtos autênticos – obras de arte ou algo semelhante – de construtos estéticos essencialmente inautênticos, como as mercadorias culturais. A supramencionada relevância da estética e da filosofia da arte num posicionamento político fica patente nesse processo de avaliação.

A tendência à simplificação e aos modelos de fruição quase automática nos vários campos da arte são sinal do que vem por aí ou mensagem que transmite um diagnóstico sombrio?
É evidente que a influência dessa banalização dos construtos e do automatismo nos processos receptivos é muito grande, mas o fato de, no mundo todo, surgirem continuamente construtos estéticos que denotam grande criatividade dos seus autores sempre renova a certeza de que nem tudo está perdido. Tais criadores realizam uma espécie de guerrilha contra a dominação da indústria cultural e o potencial libertador dessas ações é muito grande.

Qual a atualidade da reflexão de Theodor Adorno sobre arte e política?
Avalio que o pensamento de Adorno é atual porque, mesmo depois de muitas transformações pelas quais o mundo passou de meados do século 20 para cá, é difícil fazer uma reflexão radicalmente crítica sobre a cultura que não passe por alguns de seus pressupostos teóricos mais elementares, como o da arte como depositária de valores humanos que podem implicar numa transformação completa do mundo tal como ele é, em contraste com a indústria cultural como ponta de lança da dominação pelo capitalismo monopolista e globalizado.

Como você avalia o impacto das tecnologias digitais no campo da arte e da estética?
Esse impacto foi e é muito grande, já que – para além de sua pura e simples apropriação pela indústria cultural – tais tecnologias podem trazer certa democratização do acesso de criadores radicais a meios que em muito apoiem suas produções. Isso não se confunde, naturalmente, com o supramencionado uso convencional e conservador que a indústria cultural faz dessas tecnologias, que, infelizmente, é o que predomina.




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