Os dois heróis de Suassuna

por 09/08/2014 00:13
Edu Simões/IMS/Divulgação
Edu Simões/IMS/Divulgação (foto: Edu Simões/IMS/Divulgação)
João Paulo

Ariano Suassuna foi um grande escritor. E foi um pensador de um tipo muito peculiar. Como acreditava na sabedoria do povo, fez de sua obra uma espécie de súmula poética do que aprendeu com a cultura popular. Pode parecer que é um simples populismo, uma condescendência em favor dos pobres, atitude muito próxima do esnobismo. Nada mais equivocado.

Na linha de criadores como Cervantes, Bach e Guimarães Rosa, Suassuna sabia que a força da inteligência não é atribuição do indivíduo, mas uma espécie de realização coletiva, que vai sendo sedimentada com o tempo. Assim, grandes sinfonias e romances ecoam muitas vezes gerações e gerações de artífices anônimos, filtradas pela capacidade do artista em lhe dar representação bela e elegante. Há um espírito coletivo, que por vezes é atributo do espírito, outra da emoção. Hegel e Jung, razão e inconsciente coletivo.

Essa compreensão da força criadora dos homens em situação não diminui em nada o indivíduo, mas o coloca em perspectiva. Como parte da família humana, muitas vezes precisamos deixar de lado os dois grandes continentes que definem o homem – a liberdade e a igualdade – para defender a terceira margem do rio, a solidariedade. Tanto na vida como na política.

Quem postula a liberdade, com seu alto grau individualista de ação – e potente força civilizadora – aposta em valores dirigidos não apenas pela possibilidade de querer (que levaria ao egoísmo), mas pelo poder de agir, tendo como limite a dignidade humana. Que a liberdade e o liberalismo, em economia e política, tenham levado a ideologias conservadoras é a afirmação d7e um princípio ético e político que precisa ser compreendido.

Por outro lado, os partidários da igualdade devem também ser entendidos como aqueles que, cientes das diferenças humanas, não concordam que elas se traduzam em desigualdades sociais. Que essa diretriz ética tenha gerado projetos políticos mais progressistas é também algo que merece atenção. A boa política, dos dois lados da roda da história, repercute sempre a disposição do homem em viver melhor.

No entanto, nem a liberdade nem a igualdade, por si sós, são capazes da grande síntese dos propósitos humanos em política. Para dar substância a esses dois polos é preciso defender uma terceira inclinação ética: a solidariedade. As lições de história no colégio nos acostumaram com a tripartição dos valores políticos em liberdade, igualdade e fraternidade (que pode ser o outro nome da solidariedade). Das três, a fraternidade é a mais ambiciosa e difícil. E, por seu turno, a menos valorizada.

A solidariedade, como define Fábio Konder Comparato em seu excelente Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno (Ed. Companhia das Letras), amplia e complementa a liberdade e a igualdade como um “fecho de abóbada do sistema de princípios éticos”. Quando se seguem as vias da igualdade ou da liberdade, cada qual reivindica o que lhe é próprio. No plano da solidariedade, a convocação universal é para a defesa do que é comum. Há um sentido universal que ultrapassa interesses individuais, de grupos, nações, ideologias, em razão de um patrimônio que é comum a todos.

Como lembrava Montesquieu (1689-1755), se algo é bom para mim, mas ruim para a minha família, deve ser rejeitado; se agrada à minha família, mas confronta com interesses da comunidade, também deve ser posto de lado; se atende aos valores do Estado, mas desafia o gênero humano, se trata de um crime. Com outra retórica, mais irônica e ferina, é o mesmo que afirmava George Bernard Shaw (1856-1950) ao dizer que nada garante a verdade de um princípio pelo simples fato de ser da minha família ou de meu país. A defesa dos “valores da família” e o patriotismo,são, no limite, ações destrutivas da humanidade.

Em outras palavras, a hora de dividir, de guerrear e de competir deixam a cena quando os valores universais se apresentam. Há momentos em que só a solidariedade pode garantir a sobrevivência.

Sertão em Gaza Ariano Suassuna, com sua sabedoria nutrida na sagacidade do povo, chegou às mesmas conclusões. Sua obra, tanto no teatro de Auto da Compadecida como no romance A Pedra do Reino, defende que há dois tipos de heróis a habitar todas as lidas e sagas do mundo. O primeiro herói é aquele típico do romance de cavalaria, um homem nobre, para o qual a honra vale mais que todos os princípios. Um cruzado que não volta atrás à palavra dada, que prefere a morte à desonra. Este tipo de herói, todos sabem, de certa maneira habita nossa alma (somos todos orgulhos de nossos princípios e dispostos, em tese, a morrer por eles), só que parece viver numa escala exacerbada, como se tudo fosse um caso de vida ou morte e cada achaque do dia a dia um enfrentamento contra mil exércitos.

O outro herói, típico do romance picaresco, é o homem que preza sobretudo a vida. Mais que honra, o que conta para ele é a sobrevivência. Enfrentando uma batalha todos os dias, em situação de desvantagem persistente, o herói picaresco de raízes ibéricas apela para o jeitinho, para o adaptável espírito dos expedientes que lhe permitem dar a volta nas incompreensões do destino. É o típico herói de Suassuna, de João Grilo a Quaderna, mas o escritor conhece a cartilha do relativismo e sabe que, no limite, o idealismo exacerbado leva à morte ou à derrota; e a esperteza desmedida pode gerar um canalha satisfeito. É do pêndulo dessas inclinações que a vida é feita.

Há momento para os dois heroísmos na vida, sendo a indicação dada pela gravidade da situação. Em algumas situações, é necessário não transigir, não se curvar aos interesses, defender ações sempre universalmente válidas, como no caso dos direitos humanos, da preservação da natureza, da irreversibilidade dos direitos conquistados. Os heróis da radicalidade fazem o mundo avançar e são necessários. Muitas vezes, precisamos nós mesmos pôr em funcionamento nossa cota de heroísmo cavalheiresco e mirar nos radicais e sua coragem. Os moinhos estão aí para ser derrubados.

No entanto, há também a hora em que a sobrevivência fala mais alto, que é preciso, até para continuar lutando, dar um drible nas circunstâncias e aceitar que a perda é inevitável. Os “amarelos” de Suassuna sabem disso: se submetem ao poder, mas com astúcia para burlá-lo nas horas certas. Por vezes, uma pequena derrota dos dois lados é a única saída possível. É preciso coragem para sobreviver, mesmo que a princípio isso sugira uma derrota circunstancial.

O conflito em Gaza, no Oriente Médio, é um típico jogo em que os dois lados perdem. A se tomar as razões “heroicas” dos dois Estados, a morte será a grande vencedora. Em momentos assim, é preciso que, sem deixar de lado os valores que sustentam as duas nações, cada lado ceda em nome da sobrevivência de todos. Os heróis de Suassuna podem ser entendidos nessa hora, como comparou certa vez o escritor israelense Amós Oz, como representantes de Shakespeare e Tchekhov. Nas tragédias de Shakespeare, muitas vezes o final é um palco cheio de mortos em nome de grandes verdades. Nas histórias melancólicas de Tchekhov, perdedores dos dois lados têm como tarefa recomeçar a vida, mesmo humilhados e ofendidos.

João Grilo sabia das coisas. Venceu a morte e escolheu como prêmio voltar a viver mais um pouco em meio às mesmas demandas das quais tentava se livrar. Entre um momento e outro, viver é tudo que interessa. A política e a literatura vêm depois.

MAIS SOBRE PENSAR