As texturas da cidade

por 09/08/2014 00:13
Alexandre Rezende/Divulgação
Alexandre Rezende/Divulgação (foto: Alexandre Rezende/Divulgação)

Em entrevista ao Pensar, Fernanda Goulart mostra como o estudo das grades ornamentais permite juntar na mesma reflexão elementos da arte, design e arquitetura. Ela avalia ainda o papel da universidade no estímulo aos projetos na área. A pesquisadora chama ainda a atenção para a tarefa de preservação, que leve em conta o desejo dos moradores, mas que seja dirigida por uma política de patrimônio capaz de fazer frente aos interesses estritamente econômicos.

Que tipo de questões as grades oranamentadas colocaram para você?
Elas me fazem pensar sobretudo na transparência que viabilizam entre o fora e o dentro – em contraposição aos muros, que escondem as casas –, muito diferentes da frieza dos atuais muros de vidro, mas de modo poroso, ventilado. Ao mesmo tempo, permitem à arquitetura (e consequentemente à cidade) incorporar suas texturas e desenhos, em uma dinâmica plástica que não é apenas tridimensional. As grades comumente remetem à violência urbana, mas hoje parecem inocentes em relação a outros dispositivos de segurança, que transformam as casas em prisões. A riqueza desses desenhos me faz pensar também que o ornamento deveria estar presente com mais força nos cursos de design, arte e arquitetura, e, consequentemente, no mundo, de uma maneira mais inventiva.


Que abordagem você usou para analisar a produção que entrelaça arte, design e arquitetura?
A pesquisa que investe em uma comunhão desses três saberes, e que nela são indissociáveis. Foi, por isso, uma abordagem híbrida, entre a ciência e a arte. A primeira estratégia metodológica é mais científica, e consistiu em delimitar as regiões mais representativas a serem percorridas, quando optamos pelos bairros dentro e nas adjacências da Contorno, ou seja, uma Belo Horizonte mais antiga, onde eu suspeitava que pudesse haver um maior número de grades. Uma abordagem mais estética (que diz respeito à arte e ao design) guiou a confecção e a organização do inventário gráfico, quando foi preciso desterritorializá-las, descontextualizá-las, o que significa que elas perdem seu lugar geográfico e seu contexto individual (aquela casa, aquela cor, aquele serralheiro, aquela escolha) para que possam habitar um catálogo de ornamentos, uma gramática ornamental, à espera de serem reutilizadas como formas artísticas, mais fragmentadas, independentemente de serem de ferro.

Qual foi o passo seguinte?
Um terceiro momento foi o de reterritorializá-las, ressignificá-las: entrevistar moradores e tentar compreender como essas formas reverberam em seu imaginário, que importância elas têm para eles. Aqui está o campo da arquitetura, em toda a sua força, mais do que plástica, uma força vivencial. Mas neste tipo de abordagem também estou eu, como artista que sou, imprimindo no livro (e na tese) o meu olhar para esses objetos, um olhar às vezes nostálgico e sempre poético, que me permitiu ignorar certas exigências da ciência, da academia. Mas talvez a melhor maneira de interpretar, nesta pesquisa, o diálogo entre arte, design e arquitetura seja silenciosa: olhar para essas formas e perceber o modo como elas fazem acontecer, com tanta vibração, e de modo concomitante, esses saberes.

O que a academia oferece e o que, pela sua vivência, ainda pode ser aprimorado?
Mesmo sendo artista, a academia é minha profissão, sou acadêmica. Ela me permite ser, ao mesmo tempo, artista, designer, pensadora, pesquisadora e escritora, sem as amarras do mercado. Das amarras da ciência eu também tentei me libertar, sem perder o rigor, e na academia encontrei interlocutores que acreditam, como eu, que os saberes não são autossuficientes nem estanques, que devem dialogar, bem como deve haver um espaço para uma pesquisa que respeite aquilo que, sendo arte, não se enquadra nos modelos científicos. Nos últimos anos, a universidade pública tem nos demandado excessivamente, em função de uma política de ampliação do ensino superior que não se concretiza nem de longe em uma logística adequada. É impossível formar com qualidade um número maior de alunos sem ter as condições mínimas para a pesquisa. É ela quem nos leva adiante, que faz o ensino deixar de ser meramente técnico para ser criativo, abrangente.

O que diria para os moradores de casas em que ainda se veem grades ornamentadas?
Que não retirem as grades dali. Se pudesse dizer, mas não posso. A conversa com eles – sobre o bairro, a cidade, o patrimônio, o ornamento, a infância, a vida doméstica, a vizinhança, a família, a morte – me convidou a tentar compreender, a despeito de minha nostalgia e amor pessoal por esses objetos, sua necessidade de mudanças e o quanto é complicado desejar que o outro não a promova. Ainda assim, resiste em mim o desejo de que uma parte maior dessas casas (que estão sendo demolidas num ritmo acelerado) possa ser preservada, na contramão da intensidade assombrosa da especulação imobiliária, movida por uma arquitetura seriada que padroniza gostos e usos. Talvez a melhor política patrimonial, neste caso, não seja o tombamento, mas um certo freio nas relações desregradas entre o poder público e as empreiteiras.

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