Os filósofos não acertam sempre, mas alguns são porretas. Aristóteles, no século 5 a. C., já dizia que a vida se resume a poucas atitudes: nascer, trabalhar e morrer. O trabalho é o único momento sobre o qual temos o mínimo de controle. Para o pensador grego e para Freud, a única forma de dar sentido à vida é o trabalho criativo e prazeroso. Mesmo Marx, que denunciou o esvaziamento do sentido do labor na sociedade capitalista, sabia que o homem se define como um ser que trabalha.
PRETO E BRANCO
A mostra de Sebastião Salgado, Genesis, é um momento-chave no nosso tempo. Durante oito anos, o fotógrafo percorreu o planeta em busca de sítios intocados. Mais do que a beleza de paisagens, animais e povos vivendo uma eternidade sem termo, Salgado foi capaz de flagrar o tempo. Suas imagens em preto e branco têm a força daquilo que sobreviveu ao empenho do homem em destruir o mundo e, num retorno quase mágico, nos alerta agora para nossa tíbia chance de sobrevivência.
Sebastião Salgado, em sua carreira de fotógrafo, nunca deixou de ser repórter. Seus trabalhos, que depois se desdobram em livros e mostras, são na verdade reportagens visuais sobre os grandes dilemas do nosso tempo. Compôs o retrato da América, que fez o Brasil voltar o rosto para seus vizinhos; foi atrás dos povos em êxodo pelo mundo, tocados como gado pela violência e pela ganância; mostrou os ofícios que definem os trabalhadores em todos os lugares.
O fotógrafo tem sido ainda corajoso parceiro de projetos políticos que envolvem sem-terras, exilados, doentes, migrantes. Chegou a ser acusado de usar a pobreza em seus trabalhos com objetivos estéticos. Respondeu sempre com obras íntegras e comportamento político independente, embora comprometido com causas, não com ideologias.
A exposição em cartaz no Palácio das Artes é uma oportunidade para absorver com os olhos o planeta e seus habitantes. Sebastião Salgado, cuidadosamente, fotografou aves, plantas, jacarés, montanhas, populações, geleiras e outros portentos da natureza que parecem esperar do homem apenas a grandeza da contemplação muda. O espectador – e essa parece ser uma experiência universal – sente-se ao mesmo tempo grande, por participar do espetáculo da vida, e mínimo, ao ver sua insignificância frente ao esplendor da criação. Uns chamam isso de religião. Outros, de política.
BRANCOS E PRETOS
Se Sebastião Salgado nos dá a visualidade extrema da humanidade, a música dos Racionais MCs nos puxa para a dimensão social da vida que nos observa da “periferia” para o “centro”. O grupo paulista de rap completa 25 anos como a última grande novidade da cultura brasileira. O que Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay vêm fazendo só se compara, no campo da cultura popular, ao que foi realizado pela geração da chamada Música Popular Brasileira, surgida nos anos 1960 com os festivais.
É curioso que tenha sido Chico Buarque, figura de proa da MPB, quem primeiro detectou no rap uma novidade que vinha passando ao largo do cânone ditado pelo mercado. Chico, filho de Sérgio Buarque de Hollanda, conhece bem a dimensão de cordialidade da cultura brasileira, identificada no clássico Raízes do Brasil, de 1936. Trata-se de uma tradição que põe o sentimento à frente da razão, o afeto acima da lei, as convenções sobre a universalidade da norma. Os Racionais são, assumidamente, anticordiais.
Tem o momento da paz e a hora do conflito. Tem a arte que apazigua e a que enerva. Há a política da conciliação e a do confronto. Os Racionais representam o lado da afirmação, do conflito, da denúncia. Em suas canções, o universo é pobre, as pessoas sofrem discriminação, são negros, apanham da polícia. Mas reagem. Além da arte, que afronta os bons modos, há uma decisão consciente em arregimentar sua turma, apontar os inimigos, construir a reação. Não há nada mais distante dos Racionais MCs que a piedosa caridade cristã, a distribuir seus restos como dádivas e diminuir o outro na figura do carente. Carente é o cacete.
A música dos Racionais, sem negar o internacionalismo que se alimenta da música americana, tem sabedoria que brota dos ritmos brasileiros, com Tim e Bens e tais. Mano Brown, quando todos se acostumaram com sua recusa do sistema, foi capaz de driblar as barreiras e invadir a festa. É hoje uma referência cultural incontornável, que está onde está para incomodar enquanto o mal-estar for uma atitude de protesto. A beleza de suas letras e a força das batidas são o veículo de uma política que se realiza como arte. Ou o contrário. Os Racionais são preto no branco.