Mary Poppins ganha nova edição com ilustração de Ronaldo Fraga

Clássico da literatura infantil mostra o que o filme não alcança em nova tradução integral de Joca Reiners Terron e ilustrações do estilista mineiro Ronaldo Fraga

por João Paulo 17/05/2014 00:13
Ronaldo Fraga/Reprodução
Ilustração do estilista Ronaldo Fraga feita especialmente para a nova edição de Mary Poppins (foto: Ronaldo Fraga/Reprodução)

Mary Poppins, da jornalista australiana P.L. Travers, foi publicado há 80 anos, em 1934, e há 50 chegou às telas em filme produzido pela Disney, com Julie Andrews no papel da babá. Este ano, o filme Walt nos bastidores de Mary Poppins, com Tom Hanks e Emma Thompson, mostrou que a relação entre Travers e Disney foi mais tensa do que fazia supor a versão adocicada do romance para o cinema. Para completar o ano Poppins, a Cosac Naify está lançando uma nova edição do livro, com tradução do texto integral feita pelo romancista Joca Reiners Terron, e ilustrações do estilista Ronaldo Fraga.

Mais que a história de uma idiossincrática babá inglesa que chega à casa de uma família burguesa sem muito tempo para os filhos, com um humor insular típico e doses de nonsense, Mary Poppins é uma espécie de mito. A personagem, depois do romance de estreia, ganhou sequência em livro no ano seguinte, com A volta de Mary Poppins, e completou a série com seis romances, sendo o último deles Mary Poppins e a casa do lado, de 1989.

A franquia, além da superprodução da Disney, ganharia ainda adaptações para a Broadway. Reza a lenda que a autora pretendia escrever um derradeiro romance sobre a personagem, Mary Poppins goodbye, em que a babá partiria desta para melhor, sendo convencida do contrário por pequenos admiradores que pediram que deixasse Mary Poppins viva em suas imaginações. Travers, mesmo sem ser sentimental, preferiu atender o desejo dos leitores.

Quem não leu o livro e tomou contato com Mary Poppins pelo filme vai reconhecer alguns traços exteriores da personagem: a discrição, o jeito meio surrealista, a capacidade de operar pequenos milagres no cotidiano, a empatia paradoxal com as crianças, o gosto por aventuras, as roupas exóticas. Romance de formação, Mary Poppins é a narrativa da apresentação de outro modo de ver o mundo, distante do prosaísmo e das convenções.

Quando tudo parece convencional demais, Mary Poppins instila o grão do fantástico; no momento em que se espera dela a seriedade, ela derrama seu humor singular; se tudo que a família Banks quer é a paz burguesa, ela apresenta o desejo de romper com os bons costumes em nome da felicidade. A babá chega com o vento Leste e vai embora com vento Oeste. Entre os dois momentos, tudo muda na vida das crianças Banks.

Como explica Sandra Guardini T. Vasconcelos no posfácio, o romance de certa forma dá continuidade e relê a tradição das novelas inglesas de formação, que têm como personagens centrais professoras, preceptoras e educadoras. Vivendo num momento de passagem da sociedade inglesa, as governantas e babás ocupavam o limbo entre a ala social da casa e o quarto de empregada. Solução de trabalho para as mulheres pobres, elas transitavam entre dois mundos, “participando de ambos e não pertencendo de modo exclusivo a nenhum”.

O comportamento de Mary Poppins, de certa maneira, reproduz essa ambiguidade. Ela não é mãe, mas manda como se fosse; é criada da casa, mas as crianças devem a ela obediências sem questionamentos; deveria ser submissa aos patrões, mas consegue dobrá-los com as armas de sua própria condição social (ela os convence, por exemplo, que é mais distinto aceitar uma governanta sem referências). Mesmo ditando regras de bom comportamento, Mary sempre exibe modos pouco ortodoxos. Recurso típico do humor inglês, ela sugere mais do que diz e aparenta ser menos do que é na verdade.

Para quem pensa que Mary Poppins é o exemplo de certo racionalismo, ainda que atravessado pelo humor e pela fantasia, a leitura do romance vai permitir observar outra faceta. A autora gostava de mitos e misticismo, tendo se aprofundado em pesquisas e escrito bastante sobre o tema. Em seu romance mais conhecido, Pamela Travers não perde oportunidade de apresentar certos temas e símbolos que denotam seu gosto pelo assunto. De danças rituais a teorias teosóficas, passando por arquétipos e outras manifestações ocultistas, está tudo lá em Mary Poppins.

Capricho editorial

A nova edição tem muitos atrativos. A começar pela tradução de Joça Reiners Terron, que capta o clima tradicional da linguagem dos personagens, acha soluções elegantes para o humor discreto e reconstrói uma dicção distante no tempo e cheia de convenções sociais, sem perder a comunicação com o leitor, mesmo o mais jovem. O posfácio de Sandra Guardini T. Vasconcelos contextualiza bem a obra, inserindo-a numa tradição da qual fazem parte romances de aventuras e narrativas realistas.

As ilustrações de Ronaldo Fraga são outro belo achado. O estilista, que sempre soube ler a tradição cultural com forte inteligência visual, seja de personagens da música ou da poesia, destaca desta vez o estilo fashion de Mary Poppins. Sempre a trocar de roupa, mesmo sendo portadora de uma canastra tão pequena, com roupas e adereços ela desenha sua personalidade criativa e heterodoxa. Fraga fez seus desenhos finais a partir de bordados que Stella Guimarães e suas bordadeiras da região de Itabira propuseram a partir de seus esboços. São criações singelas, com fios soltos que remetem a traços leves, ao inacabado da vida, ao intangível da memória e ao vento que traz e leva Mary Poppins da vida de seus leitores.

Escrito para ajudar as crianças na dura tarefa de amadurecer, Mary Poppins, hoje, para os adultos, talvez seja um caminho viável para ir contra o tempo e despertar o senso de mistério que vamos deixando para trás. Como fios soltos, satisfeitos em não encontrar uma tesoura pelo caminho. Nunca estamos totalmente prontos para o arremate final.

MARY POPPINS
De P. L. Travers, tradução de Joça Reiners Terron e ilustrações de Ronaldo Fraga
Editora Cosac Naify, 192 páginas, R$ 39,90

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