Henry Louis Gates Jr. estuda a condição dos negros em seis países da América Latina, inclusive no Brasil

Ensaios mostram a vigência explícita e velada do racismo na região

por João Paulo 10/05/2014 06:00
Sérgio Moraes/Reuters
(foto: Sérgio Moraes/Reuters)
O Brasil tem 134 categorias de cor de pele. São 12 na República Dominicana e 16 no México. Para o norte-americano há preto e branco. A determinação binária, tradução da “regra de uma gota”, tem raízes econômicas racistas: era a forma de garantir a um senhor branco, pai do filho de uma escrava negra, que o menino era negro e, portanto, igualmente escravo.

Os países que se esforçam em criar muitas classificações talvez estejam propondo apenas formas displicentes de fugir à realidade do racismo. Sobretudo quando, independentemente das categorias, se verifica que quanto mais perto da raiz africana, maior a proximidade com a parte mais baixa da pirâmide econômica. O que parece ficar claro, portanto, é que se trata de uma questão política.

A situação tem gerado muita polêmica ao longo dos séculos, chegando aos episódios recentes no futebol e às eternas discussões acerca da questão da política de cotas raciais. No Brasil, o mito da democracia racial, codificado por Gilberto Freyre, ainda parece animar ideólogos de uma nação sem conflitos. Com o multiculturalismo, o mito parece ter ganho um reforço, com o reconhecimento das raízes africanas da sociedade, mas que são sutilmente boicotadas por uma escala valorativa que solapa as contribuições negras em cultura e religião.

O livro Os negros na América Latina, de Henry Louis Gates Jr., é uma contribuição e tanto para esse debate. Professor e pesquisador de Harvard, considerado uma das maiores autoridades atuais em culturas africanas e afro-americanas, Gates é autor de uma série de documentários para a televisão pública dos Estados Unidos. Como produtor executivo, roteirista e apresentador da série, ele tinha como propósito mostrar ao público americano a realidade das relações raciais em seis países da América Latina: Brasil, México, Peru, República Dominicana, Haiti e Cuba.

Originado nos programas para a televisão, os ensaios que compõem o livro têm de melhor o espírito jornalístico e a obrigação de buscar fontes com credibilidade para falar do tema, escapando assim de certa tentação acadêmica. Mas vai além, incorporando informações, bibliografia e interpretações, em diálogo com as principais contribuições históricas sobre o tema. Para o leitor, no entanto, fica sempre a sensação de uma conversa para a qual é convidado a acompanhar o autor.

A tese histórica de Henry Louis é que a grande diáspora africana em direção à América atendeu a ciclos econômicos bem delimitados – da mineração, do açúcar, do tabaco e da pecuária –, em favor dos interesses econômicos dos países europeus. Para alimentar a produção, milhões de homens e mulheres foram transplantados para o Novo Mundo, onde se tornaram escravos em circunstâncias desumanas por mais de três séculos.

Com o fim da escravidão, permaneceram as condições de exclusão, opressão e desprestígio social, que ainda hoje escancaram suas marcas na vida dos afrodescendentes. É nesse registro que deve ser lida a história de cada país, em suas práticas de resistência e na luta pela conquista de direitos. O que o livro – e o documentário – trouxe de novo para o leitor americano foi expor a realidade fora dos EUA. Povo autocentrado, o americano médio, em questões de história internacional, é quase orgulhosamente ignorante.

O próprio autor, homem de formação sofisticada, que passou por Yale e Cambridge, reconhece que sabia muito pouco sobre o tema. Os americanos, confessa, acreditam que a questão racial é atributo de sua formação, desconhecendo que receberam menos de 5% dos 11 milhões de escravos vindos da África. É a história dos outros 95% que é narrada ao estudar seis países da América Latina, tão próximos e tão longe ao mesmo tempo. Não se pode dizer que, no caso do leitor brasileiro, a realidade é outra. Que sabemos sobre a escravidão no Peru, Haiti e Cuba? E sobre os movimentos por direitos civis que mobilizam a população do México e da República Dominicana?

Chica e MV Bill

O primeiro capítulo do livro, que interessa mais de perto o leitor brasileiro, tem o sugestivo título de “Brasil: que Exu me conceda o dom da palavra”. Trata-se de uma homenagem ao pensador e militante Abdias do Nascimento, um dos interlocutores do autor, que costumava abrir suas intervenções no Senado invocando a divindade de sua devoção. O ensaio é o mais longo do livro, talvez por apresentar temas, como a democracia racial, que depois se tornam referências nos textos sobre os outros países.

Henry Louis Gates Jr. começa por se lembrar do filme Orfeu do carnaval, dirigido por Marcel Camus, lançado em 1959, que se tornou uma espécie de visão oficial do país na época (inclusive ganhando prêmios importantes, como o Oscar de filme estrangeiro e a Palma de Ouro em Cannes). O longa parece comportar em si dois olhares díspares: para quem é brasileiro, é uma enfiada de lugares-comuns e estereótipos; para os estrangeiros, uma visão idílica, quase redentora. O autor parece não ter se afastado dessa reação. Seu ensaio é uma desconstrução paulatina desse olhar iludido.

Narrado em tom de diário de viagem, o capítulo sobre o Brasil acompanha o périplo de Henry Louis pelo país. Ele vai a Salvador, onde conversa com os historiadores João José Reis e Wlamyra Albuquerque sobre aspectos singulares do escravismo brasileiro; se dirige ao Curuzu para ouvir a história do Olodum e da construção da consciência negra em torno da arte, contada por João Jorge. Procura ainda Pai João, para acompanhar um ritual de candomblé e tecer comentários vivos sobre religiões como a santería cubana e o vodu haitiano. Vai atrás de capoeiristas para entender as origens sociais e marciais da prática de origem africana.

Em Minas Gerais, o autor se encontra com a historiadora Júnia Furtado, com quem conversa sobre Chica da Silva e as mulheres escravas na região, que buscavam a ascensão social a partir do modelo dos brancos, o que surpreende Henry. Aos poucos ele vai percebendo a sutileza e complexidade da relações sociais brasileiras no período. O autor tem ainda um encontro com a atriz Zezé Motta, intérprete da escrava no filme de Cacá Diegues, e se encanta com sua inteligência e beleza (sem entender muito bem quando ela diz que foi considerada feia demais para o papel por um produtor).

Sua viagem passa ainda por Belo Horizonte, onde conversa com a cabeleireira Dora Alves, defensora do orgulho em torno da beleza negra – num país em que a chapinha parece ser de uso obrigatório. O autor passa em revista as contribuições de Manuel Querino (“uma mistura brasileira de Booker T. Washington e W. E. B. du Dubois”) e de Gilberto Freyre, antes dos dois encontros mais expressivos de sua viagem ao Brasil, com Abdias do Nascimento, um crítico iracundo das concepções freyrianas, e com o rapper MV Bill, que leva o debate para o tema inescapável da educação, sempre deixada em segundo plano.

Seguindo a inspiração do cantor, Henry Louis ataca o polêmico tema das cotas. Depois de encontro com a professora Marilena Rosa Nogueira da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ele pede para participar de um debate com estudantes a respeito do tema. O que ele presencia, na construção dos diferentes argumentos, é um debate que de certa forma reproduz o que ele viveu nos anos 1960 em seu país, mas que traz elementos que são próprios da realidade brasileira. Mais que bandeiras de intelectuais, as mudanças estão em todos os cantos da sociedade. Exu parece estar trabalhando bem. Mas ainda tem muita luta pela frente.

Nos demais ensaios de Os negros na América Latina, Henry Louis Gates Jr., com o mesmo método gentil de informar como quem civiliza, e com o honesto reconhecimento do que deve aos seus interlocutores, analisa peculiaridades da questão racial no México, na República Dominicana, no Peru, no Haiti e em Cuba.

O que unifica os textos, que tratam de realidades históricas, sociais, econômicas e políticas singulares, são as perguntas: Que lugar os negros ocupam na sociedade?; como sua cultura é tratada?; o que está sendo feito para enfrentar o racismo?. Identidade, expressão e política: não há outra forma de combater a estupidez.

. Editora Companhia das Letras, 360 páginas, R$ 47,50 e R$ 33 (e-book)

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