Paisagem desolada

Sai no Brasil o primeiro volume da saga em quadrinhos Aâma, de Frederik Peeters. Trama futurista mescla experimentos científicos e questionamentos existenciais

por 26/04/2014 00:13
Nemo/Reprodução
None (foto: Nemo/Reprodução)
Valf



A carreira do suíço Frederik Peeters sempre recebeu reconhecimento traduzido em importantes premiações. Na França, seu álbum Sandcastle (Castelo de areia, na publicação brasileira), obra realizada em parceria com o diretor e roteirista francês Pierre-Oscar Lévy, ganhou, em 2011, o prêmio de melhor graphic novel de ficção científica no festival Utopiales Science Fiction. Dois anos depois, ainda na França, duas outras produções foram também premiadas – Lupus, na categoria de ficção científica, e RG, quadrinho policial que contou com a colaboração de um amigo da polícia francesa.

Quando, porém, recebeu, em 2013, o prêmio de melhor série pelo segundo volume de Aâma no mais importante festival de histórias em quadrinhos da Europa, na cidade francesa de Angoulême, o multipremiado artista o considerou especial, pois recebeu a honraria das mãos de uma personalidade que, de forma indireta, havia sido parte mais que importante em sua carreira – Jean-Pierre Dionnet. Um dos fundadores da seminal revista francesa Métal Hurlant, ele foi responsável pela publicação de novos talentos e também de grandes nomes dos quadrinhos europeus em meados dos anos 1970, e assim por mais de uma década. Enki Bilal, Philippe Druillet, Caza, Moebius entre vários outros poderiam ser citados. Influência de toda uma geração de fãs de quadrinhos, dentre eles o artista suíço.

Moebius, por exemplo, que Frederik aponta como sendo uma de suas maiores referências, chegou a escrever o prefácio de Pachyderm, uma das HQs de Peeters. Curioso, porém, é que, apesar de toda a influência e prêmios recebidos por histórias de ficção científica, o autor não se considera um grande fã do gênero. Diz preferir usar a liberdade dada pelo estilo apenas como base para outros tipos de discussões. E é o que parece acontecer em sua recém-lançada obra no Brasil, Aâma: O cheiro da poeira quente, pela Editora Nemo.

Nela, uma intrincada trama ambientada em um futuro distante se divide entre os questionamentos e problemas de seu personagem principal e a busca de um experimento científico. Somos apresentados ao protagonista de uma forma muito bem-feita. Em uma bela série de planos (que será por vezes utilizado de maneira importante na HQ), ele surge em meio ao que parece ser o local de uma explosão sobre um monte, em uma paisagem desolada. Acorda sem saber quem é e não tendo nenhuma referência de onde está. Ainda entorpecido, tenta achar respostas para seus questionamentos, mas somente imagens pouco claras aparecem em sua mente, fazendo aumentar o clima de confusão.

Subindo a encosta do monte, aparece em cena Churchill, um gorila-robô, que demonstrando verdadeira satisfação por ver o aturdido personagem vivo e em boas condições, apresenta ao leitor o protagonista. Seu nome é Verloc Nim. Tentando elucidar a situação, Verloc questiona o gorila. Novamente, utilizando um plano muito bem escolhido, o artista mostra o protagonista de costas, enquanto Churchill, em um detalhe de seu olhar vago, opta pelo silêncio. E então lhe oferece um diário. A narrativa ganha novas dimensões. O diário se transforma no fio condutor que vai revelando, por meio de flashbacks, um pouco sobre o ocorrido com Verloc Nim nos dias que se antecederam e sobre a complexa e mais que turbulenta vida do personagem.

Marginal e drogado

Com saltos narrativos entre o presente e o passado, a história vai sendo pouco a pouco construída de forma instigante. Verloc é um pária que, abandonado pela mulher, não pode se aproximar da filha. Prefere viver à margem da sociedade, por não aceitar ser subjugado pela dependência da tecnologia, e vive como um junkie, afundado nas drogas, por não conseguir encarar sua inadequação. Em uma bad trip de shia (a droga que usa), Verloc é resgatado por seu irmão Conrad e pelo gorila-robô Churchill (guarda-costas de Conrad). Conrad convence Verloc a acompanhá-lo a uma viagem ao planeta Ona(ji), onde um grupo de cientistas e seu importante experimento científico haviam sido abandonados alguns anos antes e agora deveriam ser recuperados. Os três personagens partem para o distante planeta e descobrem que nada seria tão simples. No grupo deixado à própria sorte, o trio encontra intrigas, complôs, fugas e mistérios.

Aâma, O cheiro da poeira quente é a primeira parte de uma quadrilogia (os volumes 2 e 3 já foram lançadas na Europa e são prometidos ainda para este ano no Brasil) é um ótimo álbum. Frederik Peeters nos brinda com um belo trabalho, que traz tanto uma bem realizada construção de personagens quanto um refinado enredo e maneira de contar essa estória. Agora é esperar os próximos números e montar o quebra-cabeça.

AÂMA: O CHEIRO DA POEIRA QUENTE

De Frederick Peeters
Editora Nemo, 88 páginas, R$ 39


MAIS SOBRE PENSAR