O amor é a nossa praia

Carola Saavedra, uma das mais interessantes vozes da literatura brasileira contemporânea, fala sobre os percalços dos encontros e desencontros afetivos em O inventário das coisas ausentes

por André Di Bernardi Batista Mendes 19/04/2014 00:13
Andréa Marques/Divulgação
Chilena de nascimento e vivendo no Brasil desde os 3 anos, Carola faz parte dos 20 autores brasileiros jovens destacados pela revista Granta (foto: Andréa Marques/Divulgação)
Dizer das coisas falecidas. Descrição detalhada de patrimônios. Levantamento minucioso, lista, rol, relação. Relativo à partilha dos bens: os significados da palavra inventário sugerem ritmos e vários rumos. Carola Saavedra, no livro O inventário das coisas ausentes, conta os périplos de vidas marcadas pela ausência e pelo abandono. E quando o amor acaba? Como inventariar este desastre? O que fica depois dessa máxima luz? A escritora fala sobre Nina, uma garota de 23 anos, a partir do momento em que ela e o narrador se conhecem na faculdade. Os dois têm um envolvimento amoroso, mas certo dia ela desaparece sem deixar notícias. Ela deixa, contudo, 17 preciosos diários. O livro dá voz também a esse narrador, o livro é também sobre ele, um aspirante a escritor, que faz diversas anotações no seu caderno.

Carola Saavedra monta com competência uma estrutura narrativa que prende o leitor, que seduz, que provoca e ao mesmo tempo faz pensar. A escritora inventa tramas paralelas que se entrelaçam e que, por vezes, seguem independentes. Carola investiga também o próprio fazer literário, respeita a força das memórias e escancara, sem anestesia, as feridas, as dores e as alegrias deixadas pela passagem da vida, do tempo instantâneo, do tempo sem freios, do tempo que ao mesmo tempo beija e escarnece.

O amor é algo que realmente começa; ou ele já aí está, dentro de nós, como coisa latente, pronto para dar o bote? O narrador, a partir da reconstrução ficcional dos textos deixados por Nina, conta a história de seus antepassados e assim vai descobrindo coisas, numa tentativa de recriar a mulher amada. Ele fala do outro, mas ele também fala de si mesmo. Um antigo ensinamento oriental diz que discípulo pronto, o mestre aparece. Amar é aceitar os desmandos de si mesmo. O outro é apenas fonte e estrada. Mas, como é difícil lidar com tal descoberta quando a reboque chegam misérias, quando disso tudo surgem palavras como, por exemplo, abandono. O amor pode ser asa, pode ser céu, pode ser azul de anjos lilases.

O amor pode ser fardo, cadeia e caos. Carola tem, carrega algo precioso para o bom escritor, uma inquietude, um desassossego que açula, que provoca e exaspera. Isso não impede uma certa racionalidade positiva. Ela, dentro deste processo intuitivo de criação, faz experimentos, brinca com a linguagem e produz, com alegria, literatura, que é arte. Não à toa, o narrador do livro tem desejos de se tornar escritor.

Carola não faz firulas neste seu jogo de palavras, que é a literatura. Ela vai direto ao ponto, ela arma suas jogadas com sabedoria e o refinamento dos grandes craques, ela avança, respeita o adversário, conta com sua equipe, no caso, o leitor, para, quem sabe, no final, vencer a melhor das partidas. A página em branco é um abismo. Palavras são correntes, são pontes, são gangorras, são veredas que se abrem.

O amor é, para Carola, um tema incontornável. Se em Flores azuis a escritora vale-se de cartas de amor escritas por uma mulher que repassa as últimas horas de um relacionamento amoroso para contar sua história, em O inventário das coisas ausentes o tema amor se repete, mas com outras nuances, com outras tonalidades, não menos bruscas, não menos fulminantes.

É simplesmente o melhor que temos. Porque o amor não é o lugar mais comum que existe. Pelo contrário, o amor é um alvo inapropriado, é o sítio mais remoto, mais distante em termos de posse e alcance. O amor é um lugar raro, de raríssimos segredos. Ninguém nunca estará verdadeiramente preparado para, a dura penas, conquistar e, por algo corriqueiro, perder o objeto, a pessoa amada. Ferida de morte, a alma desacredita.

Carola tem a exata noção deste anoitecer brutalíssimo. Fazer um inventário é barafustar em coisas perdidas, em coisas mortas; e as coisas morrem. Se pensarmos, o passado é algo vazio, assim como o futuro. Nem é bom falar. Só é bom o presente daqueles que amam.

Quem toca, com mãos humanas, o corpo do amor? Quase poucos. A tal máquina do bem e do mal, o amor é a cor e é o lírio. De onde estivermos, o danado não escuta. O amor é a imagem que se movimenta. No inverso, a melhor ideia é justamente nadar, nadar até, exaustos, morrermos ali. O amor é a nossa praia. Não sei qual é o ideograma do amor. Como sei tudo isso? Não está nos livros. Carola Saavedra também não sabe como. Na África, no Japão (para onde foi a jovem Nina? Como e por quê?). Ninguém sabe, ninguém nunca saberá.

Carola nasceu no Chile, em 1973, mas mudou-se com a família para o Brasil aos 3 anos. É autora dos romances Do lado de fora (2005), Toda terça (2007), Flores azuis (2008, eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, finalista dos prêmos São Paulo de Literatura e Jabuti) e Paisagem com dromedário (2010, prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor, também finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti). Participou também de várias antologias e seus livros estão sendo traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Carola está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Atualmente, a escritora vive no Rio de Janeiro.

O INVENTÁRIO DAS COISAS AUSENTES
• Carola Saavedra
• Editora Companhia das Letras
• 126 páginas, R$ 34,50


Trechos

“Dentro da caixa vários cadernos, logo descobri que eram diários, os diários de Nina. Dezessete no total. Pelas datas, cobriam os últimos cinco anos. Porém, fora os cadernos não havia nada, nem uma carta, um cartão-postal, nem ao menos um bilhete. Liguei imediatamente para Nina, o que significa isto?, ninguém atendeu. Continuei ligando, mesmo sem resposta. Depois de alguns dias fui até a sua casa. Quase esmurrei a porta de entrada. Só depois de cinco semanas é que recebi uma mensagem no celular, desculpa, dizia, mas tive que fazer uma viagem, não sei quando volto. Espero que você tenha gostado do presente.”
 
“Fecho o arquivo, vou até a cozinha fazer um café. Há uma história, mas ao tentar contá-la sempre acabo contando outra, outro enredo, outro personagem. Tento me lembrar das coisas como realmente foram. O céu, a paisagem, era inverno e a neve cobria a copa das árvores formando estranhas esculturas, ou, a gente conversava animadamente na entrada do restaurante, ou, ela não se lembrava da última vez que estivera naquela parte da cidade. Há sempre algo que me escapa. Talvez esteja nessa vivência original o grande mal-entendido.”

“Nina morou catorze anos fora. No início, numa cidadezinha. Após separar-se do marido, mudou-se para Londres, entrou para a universidade, onde alguns anos depois se formou em história. Formada, conseguiu um emprego de professora no ensino médio e ali ficou, até voltar ao Brasil. Quando voltou, decidiu me procurar. Por quê?, eu perguntei, logo na nossa primeira conversa, por que esse interesse agora, depois de todos esses anos. É que havia algo sobre mim que você sabia, algo que eu precisava recuperar. Você se refere aos diários, eu perguntei, ela sorriu. Se você se refere aos diários, esqueça.”

MAIS SOBRE PENSAR