Cyro Siqueira deixou legado de reflexão sobre o cinema que ajudou a formar gerações

Ex-colunista do EM contribuiu para a maturidade da crítica brasileira. Parte de sua obra se concentra na histórica Revista de Cinema

por Geraldo Veloso 19/04/2014 00:13
Arquivo EM
Cyro ajudou a dinamizar o setor cultural com a criação do CEC e da Revista de Cinema (foto: Arquivo EM )
Na tarde gloriosa de um sábado de março, me vem mais uma bomba afetiva, conceitual e histórica: Cyro Siqueira acaba de morrer. Os dias que passam não estão fáceis: há pouco mais de 10 dias perdi um amigo, companheiro de estrada e parceiro criativo, Elyzeu Visconti Cavalleiro. Ontem, fui acordado com a notíca da perda de um outro irmão: Ricardo Miranda. E, o mais grave: são muito próximos, geracionalmente, a mim.

Cyro está em uma outra dimensão em relação à minha vivência. Faz parte de um momento de formação pessoal (mais um que se esvai, fisicamente, do nosso horizonte) e um ponto de referência no meu processo de crescimento pessoal em direção à escolha de um trajeto individual, profissional e doutrinário.

Conheci Cyro na sua coluna diária do Estado de Minas. Acho que tinha menos de 10 anos quando comecei a me dar conta da sua intervenção, pois o jornal chegava diariamente em minha casa desde que me entendo por gente. Minha irmã mais velha recortava a sua coluna (com uma “carinha” denotando o humor da recepção aos filmes) e a empilhava, metodicamente. Ao lado de seu texto, sempre havia uma chamada para as sessões de um tal de CEC, todas as semanas.

Minha formação intelectual não era naïf: meu pai assim como meus tios (de parte de mãe, na dimensão intelectual, literária e política; e de parte de pai na formação musical e humana) moldaram a minha cabeça. Meu pai era um leitor compulsivo, bibliófilo e nos passava esses “vícios” (tínhamos, em casa, um clube de leitura formado pelos meus irmãos, que dava à luz, regularmente, uma publicação caseira). E o cinema era uma constante em nossas atividades de rotina (cultural, diria eu). E o Cyro nos desafiava a um mergulho mais intenso, denso e reflexivo em algo que, para nós (e para grande parte de seus frequentadores), era “só” divertimento: o cinema.

Em 1951, Cyro criou o Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC) junto com seu irmão Cefas e intelectuais parceiros – Jacques do Prado Brandão, Fritz Teixeira de Salles, Guy de Almeida, Carlos Dênis Machado, entre outros – e logo, em 1954, o seu braço teórico, a Revista de Cinema (RC). Coerente com uma observação sua: “Naturalmente, essa extrapolação levou a discussões igualmente enganosas, como a da validade do cinema americano, a superação da forma etc. Faltando uma base, digamos, filosófica, sobre o método crítico, os debates cedo perderam em profundidade para ganhar a intensidade polêmica, sem que em nada enriquecesse a literatura cinematográfica nacional. Para isso talvez tenha contribuído, de certa maneira, a ausência de publicações especializadas que se dedicassem, com isenção, ao exame do assunto metodicamente, repetidamente. A carência de revistas sérias e verticalmente dirigidas reduz o trabalho da crítica cinematográfica à ligeireza obrigatória do jornalismo diário, ou a alguns ensaios mais demorados, mas ainda esporádicos”. (Revista de Cinema, número 1).

Estava dado o tom de uma guinada na perspectiva da reflexão sobre um fenômeno ainda “jovem” (o cinema) que buscava um processo de identidade que, até hoje, ainda não tem. Socraticamente, o cinema cresce e se afirma pela sua existência concreta em direção à busca de um edifício em construção (ou uma Babel?).

E Cyro Siqueira nos trouxe o que havia de mais importante, atual e determinante no debate teórico do cinema, que indicava as principais questões do pensamento da primeira metade do século 20.

Paulo Emílio Salles Gomes, tendo descoberto o cinema em seu segundo exílio europeu, nos anos 1940, pela influência de Plínio Sussekind da Rocha (um dos membros do Chaplin Club, carioca, juntamente com Octávio de Faria, Vinicius de Moraes e Lúcio Cardoso), pratica um processo de reflexão que inicia a criação da Cinemateca Brasileira e um rico processo de ensaísmo, extremamente influente na segunda metade da década de 50 do século passado. Entre outras coisas, credita reverentemente a “primazia da crítica mineira”, exercida dentro da iniciativa de Cyro, a Revista de Cinema. E Glauber Rocha, um menino de 18 anos, vem a Minas para se aproximar da turma da RC e propor um novo momento para o cinema brasileiro, em 1957. E Trigueirinho Neto incendeia a Bahia, em 1958, com o seu Bahia de Todos os Santos. Mas Cyro já participava da cruzada contra a censura a Rio quarenta graus, de Nelson Pereira dos Santos. E via o surgimento de um grande realizador que, até então, era um menino bonito do cinema brasileiro: Anselmo Duarte (seu filme Absolutamente certo ganha linhas lúcidas de elogio do crítico).

Bergman

A semana acabava de anunciar a presença de uma retrospectiva completa de Ingmar Bergman na cidade. Um dos primeiros filmes é justamente Morangos silvestres. Ali, em sua coluna no Estado de Minas, busquei os segredos do universo deste luterano desencantado (afinidades místicas nítidas entre o Cyro, presbiteriano, filho de pastor e de uma educadora da Zona da Mata mineira, e o realizador sueco). Um sincero mergulho no universo da crise de valores morais do pós-guerra, à beira do apocalipse nuclear, passado pelo professor Izaac Borg (representado pelo seu mentor cinematográfico, Viktor Sjoström – que ganhou o nome de Victor Seastrom, em sua breve incursão por Hollywood) em um dos mais fascinantes e lúcidos road movies da história do cinema. E Cyro me decodifica Bergman, do qual começava a me aproximar por visões de Sorrisos de uma noite de amor, Mônica e o desejo, Sonhos de mulher, Noites de circo, em sessões do CEC.

Mas Cyro nos trazia a leitura do neorrealismo. Correspondia-se com Guido Aristarco, Umberto Barbaro e Cesare Zavattini. E Zavattini sonhava fazer um filme de 90 minutos, onde nada de significativo dramaticamente acontece com um personagem (e faz, para seu parceiro mais fiel e afim, Vittorio De Sica, o roteiro para a obra-prima Umberto D). Cyro, coerentemente, defende filmes/experiências que nos trazem uma proposta temporal e cronológica curiosa: o tempo real de narração fílmica coincidente com o tempo da ação (Punhos de campeão, de Robert Wise, e Matar ou morrer, de Fred Zinnemann).

Sua escrita elegante nos mostra as afinidades com William Faulkner, John dos Passos e James Joyce. Períodos longos serpenteiam por parágrafos inteiros (há sempre a sensação de que pontos, vírgulas e travessões são indesejados ou usados como último recurso e exigências gramaticais incontornáveis), desenvolvendo ideias sempre referenciadas em pensadores, ensaístas (Kierkegaard, Croce, Morin, Vance Packard, Heidegger e outros), que nos abrem o horizonte da referência em busca da construção de um universo teórico que buscamos (eu e muitos outros), perseguido metodicamente a partir de seus textos.

Ali, em sua coluna (ou em seus textos na Revista de Cinema), vamos descortinar a presença de Visconti, de Tashlin, de Ford, de Rossellini, de Fellini, de Antonioni, de Wyler, de Lean, de Welles, entre outros.

Reproduções de críticas de Cyro Siqueira nas páginas do EM
Cyro editava suplemento que mostrava sua capacidade de articular-se com outros fenômenos da cultura do seu tempo (foto: Reproduções de críticas de Cyro Siqueira nas páginas do EM)


Segunda fase

Em 2004, no quadro que dirigia no programa criado por mim e Mário Lúcio Brandão Filho para a TV Minas, Cine Magazine, entrevistei Cyro em seu gabinete, na redação do Estado de Minas. Pretexto: os 50 anos da Revista de Cinema. Cyro estava leve, bem-humorado, lúcido, abusado, revelando segredinhos imperdíveis. Falou sobre tudo. Cordial e afável. Foi um momento inesquecível de um discípulo em diálogo com um mestre. Saí dali com a sensação de que tudo que havia feito na vida tinha valido a pena. E um pouco da “culpa” era de Cyro Siqueira.

Ali, lembrei-me de que, em 1964 (há precisamente 50 anos), pedimos sua autorização para retomar a RC por mais algum tempo. E ele, cúmplice, nos chamou para uma roda de conversa em torno do tema da crítica mineira, do cinema (brasileiro e universal) e da própria Revista de Cinema e do CEC. Chamou-nos para a sua sala, no prédio anexo aos Diários Associados, então na Rua Goiás, e capitaneou uma reflexão que é um marco da minha geração. Para mim, foi um rito de passagem. O debate está na RC número 3, da segunda fase (curiosamente, financiada pelo meu pai).

Naquele momento, respondendo a novos desafios profissionais, Cyro editava um suplemento cultural no jornal que mostrava a sua capacidade de articular-se com outros fenômenos da cultura do seu tempo. Falava e dava espaço para intervenções sobre jazz, literatura e jornalismo (tinha uma coluna onde comentava a imprensa mundial).

Cyro Siqueira é uma figura-chave do iluminismo contemporâneo. Convivia com a diferença ideológica, filosófica, teórica e cinematográfica. Debatia sob os princípios rígidos da elegância, do rigor metodológico e da coerência pessoal, com suas convicções e respeito pelo interlocutor.

É mais uma ausência com a qual teremos que nos habituar a lidar. Não é fácil. Como a reflexão de Izaac Borg, na trajetória em direção a uma homenagem acadêmica, que se vê diante do destino de todos nós: a morte. Um pensador heideggeriano (um tal de Jean-Paul) já nos disse: “O homem é um ser para a morte”. Que ela venha e que sobreviva a nós, um edifício de sabedoria e exemplos, que sirvam de alguma coisa para os que ficam. Espero aprender com Cyro mais essa lição.

. Geraldo Veloso é pesquisador, crítico e cineasta.

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