Depois do sucesso como autora infantojuvenil, Liliane Prata lança romance adulto

Livro é ambientado nos anos 1980, sob o impacto do surgimento da Aids

por Carlos Herculano Lopes 12/04/2014 06:00
Isabella Maiolino/Divulgação
(foto: Isabella Maiolino/Divulgação)
Depois da bem-sucedida estreia na literatura com os infantojuvenis O diário de Débora e O novo mundo de Muriel, que se tornaram best-sellers, e do romance Três viúvas, a escritora Liliane Prata volta ao gênero e lança Sem rumo. É seu livro mais ousado até agora, como ela mesma admite.

Para escrevê-lo, a romancista, que nasceu em Formiga, no Centro-Oeste mineiro, voltou ao início da década de 1980, quando ainda era criança, para contar uma história complexa que envolve drogas, homossexualismo e traição, além de uma pseudoliberdade sexual. Como pano de fundo, a Aids, uma doença até então pouco conhecida, que começava a assombrar o mundo e a fazer suas vítimas.

Se para escrever Três viúvas, cujas histórias vão se entrelaçando umas nas outras, a escritora não gastou mais que seis meses, com Sem rumo as coisas foram diferentes. Além de ter de pesquisar muito sobre os costumes da época, quando as pessoas assistiam a filmes em VHS, “se deliciavam com o som de Michael Jackson e Barão Vermelho e andavam de Chevette”, ela teve ainda, durante os cinco anos em que se dedicou à escrita do romance, de ir à lendária Boca do Lixo, região onde ainda hoje se concentra boa parte da prostituição de São Paulo. Visitou clínicas de reabilitação de drogados, leu dezenas de artigos de jornais e revistas, conversou com médicos, entrevistou pacientes com Aids. Sofreu com as anônimas histórias que ouviu e com os dramas pessoais que lhe foram revelados.

Transformar tudo isso em literatura não foi tarefa fácil, já que a realidade, muitas vezes, suplanta a ficção. No início dos anos de 1980, o país ainda vivia a ditadura, embora os ares da democracia, mesmo que incipientes, já começassem a ser respirados, sobretudo depois das Diretas já.

Mas como a própria Liliane Prata admite, ao contrário de Três viúvas, no qual explorou com facilidade o universo feminino que lhe é familiar, para escrever Sem rumo ela teve de ir a outro extremo, o que demandou muita humildade e discernimento de sua parte e a fez entrar num mundo completamente diferente e distante do seu.

Mentiras O personagem principal é um executivo chamado Fernando, que trabalha numa empresa estrangeira recém-instalada no Brasil e em torno do qual gira a trama. Ele vive faz as coisas sem pensar, envolve pessoas à sua volta e mente descaradamente para a sua mulher, que por ingenuidade ou conveniência acaba fechando os olhos. E tudo isso sem medir as consequências dos seus atos, que no decorrer da história e até seu término se mostrarão desastrosas, sem possibilidade de volta.

Se Três viúvas, apesar de ser uma história triste, recheada de perdas e solidão, é um romance de leitura leve, que conduz a um final sem maiores traumas, em Sem rumo nada disso ocorre. Liliane Prata, que passou a adolescência em Belo Horizonte, onde estudou no Colégio Santo Agostinho, não abriu concessões nessa nova investida literária. Daí a força do livro.

E a sensação que fica, ao terminar de ler a última página, é que o mundo (independentemente de a trama urdida pela escritora se passar nos distantes anos de 1980) continua o mesmo, com poucas esperanças de redenção. Repensar essa realidade e procurar fazer alguma coisa para mudá-la é a única chance que nos resta se não quisermos cair no abismo absoluto, do qual dificilmente seremos resgatados.

Sem rumo é um livro atual e impactante, além de um alerta contra as armadilhas, quase sempre sutis, que estão à nossa volta.


Sem rumo
• De Liliane Prata
• Editora Planeta
• 198 páginas, R$ 26,90


Três perguntas para...

Liliane Prata
Romancista


Como surgiu a ideia de escrever essa história e ambientá-la nos anos de 1980?
Lá pelos idos de 2000 ou 2001, estava na faculdade de jornalismo e peguei uma disciplina de psicanálise como optativa. Um dos casos clínicos contados pelo professor era sobre um paciente perseguido dia e noite pela sensação de ter Aids, mas sem coragem para fazer um exame. Pensei em escrever um livro a esse respeito, mas não me senti capaz: era um tema difícil para mim, que, naquela época, só escrevia textos mais leves e voltados para o público juvenil. Mas anotei a ideia, deixei na gaveta e só comecei a trabalhar no romance em 2007. De lá para cá, reescrevi-o dezenas de vezes. Nas primeiras versões ele se passava nos dias atuais, até que resolvi levá-lo para os anos de 1980, quando a Aids começou realmente a ficar conhecida.

Fez uma imersão naqueles tempos?
Acho que li mais jornais e revistas de 1984, ano em que realmente o livro se passa, do que atualmente. Também vi muitos filmes da época, entrevistei pessoas, visitei clínicas. Enquanto trabalhava no romance, só ouvia música dos anos 1980, só falava daqueles tempos. Fiquei tão envolvida que, quando saía de frente do computador, tinha dificuldade de voltar imediatamente à década em que estava vivendo. Qualquer interlocutor com mais de 40 anos virava automaticamente meu entrevistado.

Sem rumo é o seu melhor livro?

Para mim, além de ser o meu melhor livro, é também o mais ousado. E, com certeza, foi o mais difícil que escrevi até hoje. Gosto de escrever à vontade sobre sentimentos, impressões dos personagens, mas desta vez queria uma narrativa ágil, limpa. Na história, além da Aids, abordo também outros temas difíceis, já que o personagem principal é alguém muito perturbado, que fecha os olhos para seus reais sentimentos e desejos e não lida com os seus, digamos, abismos interiores, enquanto eu me sinto até sufocada de tanto olhar os meus.

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