Livro reúne artigos e estudos sobre a obra de Vilém Flusser

Filósofo viveu 30 anos no Brasil e antecipou a reflexão sobre as redes e o poder das imagens

por Carolina Braga 12/04/2014 06:00
Com o devido distanciamento que o tempo permite, é engraçado observar o quanto certos pensadores recusaram o papel de visionários. Faz parte da modéstia da categoria. Mas o que dizer sobre alguém que ainda no início da década de 1970, quando a internet era algo restrito a fins militares ou usada para troca de informações acadêmicas, já depositava no diálogo em rede a receita para o futuro da comunicação? O mesmo pensador que discutiu a superficialidade enquanto todos buscavam profundidade e mergulhou fundo no entendimento do predomínio das imagens na sociedade.

Esse foi Vilém Flusser (1920-1991). O filósofo nascido em Praga, em 1920, escreveu parte considerável de sua obra quando viveu no Brasil, a partir de agosto de 1940. Foram 30 anos vividos em São Paulo, onde dedicou-se à docência, publicou em jornais de circulação nacional e figurou entre os mais importantes intelectuais que marcaram a história do país. No fim da década de 1970, Flusser mudou-se para a Europa, de onde viu chegar o reconhecimento internacional. A projeção deu-se principalmente depois do livro 'A filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia', publicado em 1983 e traduzido em vários idiomas.

Foi o momento em que o pensamento sobre a imagem converteu-se em um dos pilares da obra do filósofo, que morreu em 1991, vítima de atropelamento em seu país natal. A filosofia de Vilém Flusser, no entanto, vai além das imagens técnicas que propôs ou de tudo que provocou sobre o futuro da comunicação. “Era um pensador riquíssimo. Uma cabeça muito universal”, comenta o professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Duarte.

É justamente a versatilidade do filósofo que está destacada em 'Imagem, imaginação, fantasia – 20 anos sem Vilém Flusser' (Relicário Editora ), organizado pelos professores Alice Serra (UFMG), Rodrigo Duarte (UFMG) e Romero Freitas (UFOP). O livro, que será lançado hoje em Belo Horizonte, é fruto de congresso internacional realizado em Ouro Preto, em 2011. Com o objetivo de abordar aspectos importantes do pensamento de Flusser, os 20 artigos propõem outros olhares sobre o autor de 'Língua e realidade'.

“Não privilegiamos nenhum período. Qualquer contribuição foi analisada, seja na primeira fase de seu pensamento, ou na segunda, a europeia, mais voltada para a filosofia. Compreendemos como essas duas fases se complementam”, diz Rodrigo. Segundo ele, com o passar do tempo, outras áreas vão encontrando novas familiaridades com o universo flusseriano. 'Imagem, imaginação, fantasia', por exemplo, chama a atenção para apropriações da arquitetura e também do design no âmbito da reflexão filosófica.

Em “A sedução da imagem na arquitetura”, por exemplo, Ana Paula Baltazar discute o modo como o espaço da cidade aparece nos textos de Vilém Flusser. De acordo com a professora da Escola de Arquitetura da UFMG, Flusser faz “apontamentos para futuras discussões acerca da produção (social) do espaço com o foco no espaço vivido (concreto)”. É esse também o caminho escolhido por Silke Kapp em “A cidade como espaço teórico”.

Já os modos de abordagem das artes foram temas dos trabalhos de Rachel Cecília de Oliveira Costa (“Arte contemporânea como arte pós-histórica”), José Luiz Furtado (“Arte e imaginação em Husserl”), Pedro Duarte (“O espaço sublime da arte: romantismo e expressionismo”) e Verlaine Freitas (“Imagem, símbolo e arte”). Em “O papel da arte na filosofia de Vilém Flusser”, Débora Pazetto Ferreira investigou as relações entre arte e cultura a partir das reflexões presentes em A filosofia da caixa preta, assim como em A arte como embriaguez e Língua e realidade. Por sua vez, Fábio Belo (“O não objeto, o espetáculo, a ruína: comentário sobre a fotografia de Juan Rulfo a partir da teoria de Flusser”) explorou a noção de não-coisa, presente no livro O mundo codificado, e Maria Teresa Cardoso de Campos dedicou-se à relação entre história e pós-história.

Comunicação


Parte importante no pensamento de Flusser, as aproximações com a área da comunicação se concentram nas abordagens preliminares sobre a sociedade telemática e as implicações geradas a partir disso. Em “Um profeta das tecnologias da informação? A atualidade da obra de Vilém Flusser sobre teoria midiática”, o professor da Università della Svizzera Italiana, Rainer Guldin, revela o quão pertinentes – e atuais – foram suas reflexões sobre a mídia.

Entre as teses centrais da filosofia da mídia de Vilém Flusser está a defesa do diálogo “enquanto ação libertadora, coletiva e doadora de sentido”, como pontua Guldin. O exercício do autor foi encontrar em textos produzidos na década de 70, cujas principais referências eram a televisão e o telefone, modelos que regem hoje redes sociais como o Twitter.

 “Flusser vê a possibilidade de uma rede de conexão de computadores segundo o modelo da rede telefônica. Ao contrário dos círculos de diálogos fechados e que funcionavam de modo elitista, aos quais pertencem também a ágora e o mercado, as estruturas de rede são sistemas abertos. Somente elas podem fazer frente às mídias de massa discursivas e despolitizadas. ‘Assim, um engajamento nas estruturas de rede é a única forma possível, hoje, de ação revolucionária na sociedade de consumo’”, explica Rainer Guldi, citando Flusser.

Em 'Imagem, imaginação, fantasia – 20 anos sem Vilém Flusser', Rodrigo Duarte aborda alguns dos textos publicados na década de 1970 no Suplemento literário de O Estado de São Paulo. Para o professor da UFMG, a obra de Flusser pode ser entendida a partir de quatro conceitos chave: programa, imagem, ritmo e comunicação. No que se refere ao campo comunicativo, havia a distinção entre os discursos (que visam a objetividade) e os diálogos (que têm a função de difundir conhecimento). “Mesmo diante da ampla possibilidade de desenvolvimento dos diálogos, nela predominam os discursos, que são sintoma de uma crise profunda na sociedade contemporânea.”

Como o organizador comenta, apostar na diversidade de olhares sobre a obra de Vilém Flusser é também uma forma de demonstrar gratidão. Há também o desejo de ampliar o acesso às ideias do pensador. “Não o conheci pessoalmente, mas soube que era muito carismático, sedutor. Mesmo depois de morto, o trabalho continua seduzindo. É um pensamento que está começando a ser mais reconhecido”, conclui.

Imagem, imaginação, fantasia: 20 anos sem Vilém Flusser

. Organizado por Alice Serra, Rodrigo Duarte e Romero Freitas
. Relicário Editora, 244 páginas, R$ 40
. Lançamento hoje, às 11h, na Livraria Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi

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