Gilberto Gil lança disco com canções que foram eternizadas por João Gilberto

Álbum é uma antologia de sambas que ganham camadas de sentido, sem deixar de reverenciar a tradição

por João Paulo 05/04/2014 11:16
Jean-Christophe Magnenet/AFP
Gilberto Gil Torna suas as canções que foram recriadas pela arte de João Gilberto: não pode haver respeito maior (foto: Jean-Christophe Magnenet/AFP)

Gilberto é o primeiro nome de Gil e o segundo de João. Por isso o plural: Gilbertos. O disco tem ainda sobrenome, Samba. Ficou assim: Gilbertos Samba. O álbum é uma homenagem de baiano para baiano, de Gilberto Gil para João Gilberto. Ao somar seu nome ao do artista que o inspira desde o começo da carreira, Gil foi sagaz. É disco de seguidor, mas que, em honra ao mestre, inventou seu próprio caminho. Gil canta ao seu jeito canções que são de João.

A ideia de homenagear João Gilberto parece fazer parte do projeto de todo cantor brasileiro a partir da bossa nova. O canto joão-gilbertiano é um padrão: voz límpida, divisão perfeita, balanço, acompanhamento sofisticado ao violão. Não sobra nada. Tudo que João toca se torna ele mesmo. Um estilo. Caetano às vezes canta como João Gilberto, outras compõe pensando nele. Mas todas as homenagens podem se tornar pequenas, afinal de contas, a perfeição não tem parâmetros.

Por isso, Gilberto Gil fez um disco tão original. Ele não quis imitar ou emular João. Seu alvo era outro: o Gilberto que é comum aos dois. Compositor plural, cantor criativo e excelente violonista (dos poucos da música popular capazes de se comparar com João), Gilberto Gil decidiu gravar um disco de sambas, com repertório de temas de João Gilberto e duas composições inéditas, a instrumental Um abraço no João e a programática canção Gilbertos.

Para levar adiante o projeto, Gil escolheu como produtores o filho Bem e o filho de Caetano, Moreno. Tudo parecia indicar o caminho natural do banquinho e violão, que Gil já havia trilhado (de forma sublime, é bom relembrar, em Gil luminoso). Mas Gil nunca foi de ir pelo caminho mais fácil. Convidou Domenico para tocar em todas as faixas – percussão e eletrônicos, além de palmas e ruídos –, ao lado de instrumentistas de diferentes escolas e inclinações musicais: Mestrinho (acordeão), Nicolas Krassik (violino), Pedro Sá (guitarra), Danilo Caymmi (flauta), Dori Caymmi (violão) e Rodrigo Amarante, que assina um arranjo, além do naipe de sopros em algumas faixas.

O resultado é um disco de sonoridade rica, mas profundamente fincado no jogo de voz e violão. Os instrumentos entram para acentuar intenções e até para destacar o silêncio, que em João Gilberto é sempre funcional. Assim, as palmas, sons de lixa e faca raspando no prato atuam no contratempo, marcando ritmo apenas sugerido pelo violão em João Gilberto, como na faixa de abertura, Aos pés da cruz (Marino Pinto e Zé da Zilda).

Em Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça), o silêncio do violão de  João ecoa no bumbo longínquo de Domenico. Canção que, com Chega de saudade (que não está no disco), ajudou a definir a ética da bossa nova, Desafinado chega cheia de histórias e provocações, inclusive com guitarras. De manifesto de uma nova sensibilidade, já suficientemente incorporada, ela ganha outro sentido. O que permite inclusive uma feição mais amorável, flexível, como se convocasse todas as formas de distorção, tolerante, relaxada.
A voz e o canto de Gilberto Gil são outros aspectos que dão ainda mais força a Gilbertos Samba. Tudo que em João mira para o minimalismo, como a ausência de vibratos, notas pouco elásticas e a flecha que atinge o alvo da concisão em seu risco calculado, em Gilberto Gil permite expansão, ensaio e, inclusive, erro. Gil é cantor de rock e baião, o que enriquece sua voz de possibilidades expressivas. No novo disco, ele arrisca nos agudos e exibe graves no limite da musicalidade, como Em desde que o samba é samba (Caetano Veloso). Em vários momentos, ele é totalmente antiJoão, ao amaciar a voz e cantarolar melodias suaves para desfazer a tensão.

Em Eu sambo mesmo (Janet de Almeida), a percussão rascante, quase um ruído, parece comentar a letra que extravasa da melodia, dando um jeito recitado e anguloso ao canto, que é suavizado pelas passagens melódicas marcadas pela flauta. Uma afirmação do samba como singularidade, que ganha comentário na própria forma como é apresentado, mais uma herança metalinguística de João. Já a indefectível O pato (Jaime Silva e Neza Teixeira), tem introdução com escala dissonante que logo é capturada pelo ritmo da canção, com síncopas características.

Orquestra Em outros momentos, como em Você e eu (Lyra e Vinicius), a sonoridade, ainda que inusitada, funciona como nas orquestras de Claus Orgeman, criando climas que acentuam a condução da canção pela voz e o violão. O arranjo de Rodrigo Amarante é o mais trabalhado de todo o disco e faz uma ponte entre gerações, com Gil representando ao mesmo tempo a tradição e a modernidade. Mais JG, impossível.

As canções de Dorival são lembradas com dupla reverência, ao compositor e ao intérprete. Em Milagre, Gil conduz a canção como um canto de trabalho; Doralice parece brincar com a versão jazzística de Stan Getz (no álbum Getz/Gilberto), com o acordeão fazendo o sax, trazendo uma sombra de baião soprado do pé das serras da memória. Uma orquestra fantasma.

Eu vim da Bahia, do próprio Gil, traz Bem Gil na guitarra e tem arranjo com baixo, bateria, acordeão e violino. A música, que havia sido recriada por João, ganha sonoridade tropicalista, classificada por Caetano no encarte como uma composição reduzida a um “modalismo primitivista”. Gil só pode se assenhorar da própria canção porque ela passou pelas mãos de João Gilberto. O outro, o mesmo.

No capítulo das inéditas de Gil, boas surpresas. Na instrumental Abraço no João (que evoca Abraço no Bonfá, de JG), a percussão é quase um metrônomo, que faz uma moldura rítmica para o violão que alterna blocos de acordes com trechos melódicos, que vão sendo sutilmente variados. Em Gilbertos, que fecha o disco, o destaque é o violão em ponteados, como nos sambas de roda – sem esquecer a percussão no prato, mais uma herança do Recôncavo.

Com tudo isso, Gilbertos Samba é um disco para se ouvir muitas vezes, atento a detalhes da interpretação, à inteligência dos arranjos, ao virtuosístico violão de Gilberto Gil, tão inspirado e tão diferente do de João Gilberto. A cada faixa, a primeira tentação é a de buscar as semelhanças e diferenças em relação ao original, até que Gil se impõe e mostra porque o plural é a concordância mais acertada para cada canção.

Humilde, no fim do programa, em Gilbertos, Gil aceita o julgamento de Caymmi, que vaticinou que nasce um Gil a cada 25 anos. Mas reforça que, noutro patamar, surgem gênios de 100 em 100. Como o próprio Dorival e João, absolutos no panteão dos baianos. É ótimo que os gênios existam, mas é fundamental que os grandes aprendizes continuem de onde eles pararam.

Gil, consciente e luminoso, segue “ampliando-lhe a voz e o violão”.

Gilbertos

Gilberto Gil

Aparece a cada cem anos um
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Aparece a cada cem anos um mestre da canção no país

Foi Dorival Caymmi quem nos deu
A noção da canção como um liceu
A cada cem anos um verdadeiro mestre aparece entre nós
E entre nós alguns que o seguirão ampliando-lhe a voz e o violão

É assim que aparece mestre João e aprendizes professando-lhe a fé
Um Francisco, um Caetano algum Roberto e a canção foi mais feliz

Aparece a cada cem anos um
E a cada vinte e cinco um aprendiz
Aparece a cada cem anos um.

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