Exposição no Centro de Arte Popular revela o trabalho muitas vezes anônimo dos artesãos mineiros

Mostra traz bordados, cerâmica, potes, esculturas e uma variedade de carrancas

por Walter Sebastião 29/03/2014 06:00
Flávio Vignoli/Divulgação
(foto: Flávio Vignoli/Divulgação)
Criadores vindos de várias regiões de Minas Gerais, jovens ou idosos, todos desconhecidos do público, que não escondem o encanto pelo que fazem. Afinal, justificam, a arte deu a eles a chance de se expressar, fugir do estresse e ganhar dinheiro a mais que ajuda no dia a dia. Consideram ainda que o artesanato começa a ganhar mais atenção, mas também que um típico produto mineiro, pelo potencial, precisa de mais apoio. Eles são os artistas e artesãos da mostra 'A imaginação da matéria', com curadoria de Flávio Vignoli e Mazza Palermo, em cartaz no Centro de Arte Popular Cemig, em Belo Horizonte.

A exposição é pródiga em escultores. Traz, por exemplo, peça de Vicentina Julião, de 57 anos. Ela é uma das artistas da família Julião, de Prados. A artista estima que, somando todos os parentes, são cerca de 40 escultores em atividade. O primeiro a fazer escultura foi Itamar, já falecido, irmão do meio dos sete filhos de dona Francisca. Ele ganhou da mãe um galho de lima e o transformou em crucifixo. “Como todo mundo gostou e o trabalho foi vendido, Itamar começou a ensinar escultura aos irmãos”, recorda Vicentina.

Cada artesão da família Julião tem um estilo. Ela gosta de misturar elementos da natureza, temas religiosos e se inspira também no cotidiano. A peça que está na exposição em Belo Horizonte é representação de Adão e Eva. Esculpir, conta, é atividade pesada, especialmente quando é peça grande. “Mas a gente se acostuma”, garante. “É atividade gostosa. Você pega um pedaço de madeira bruta, pelo qual ninguém dá nada, e, mexendo, dá vida. É muito bonito”, afirma. A artista mora na zona rural de Prados e tem quatro filhos. “Fico feliz em ver minha filha levando a tradição da família para frente”, conta.

Visões atuais de manifestações tradicionais também estão na exposição. Fazer arte popular com leitura contemporânea é o objetivo de Jefferson Lourenço, de 29, que divide oficina com Márcio Amorim em Santana dos Montes, a 30 quilômetros de Lafaiete. Autodidata, desenha e pinta desde criança, quando se dedicava também a fazer pequenos caminhões com restos de vários materiais. Há década e meia fez “viagem de pesquisa” a Ouro Preto para conhecer o barroco. “Me identifiquei com a cidade e com o que vi no Museu do Oratório. Gosto de cultura afro, do barroco, da arte popular mineira”, observa.

Depois dos oratórios, Jefferson começou a fazer objetos construídos com diversos materiais. “São trabalhos diferentes da produção tradicional, mas sem perder elementos populares, que são da minha cultura”, argumenta. “Minas Gerais é a minha realidade”, afirma. Os trabalhos foram vistos pelo galerista Orlando Lemos, que se tornou o representante do artista em Belo Horizonte. Motivo de satisfação para Jefferson é viver só do que faz. “É uma realização”, considera. O momento é de batalha para mostrar as criações dele em salões, já tendo conseguido participar de um deles, o Embu das Artes.

Coletivos Maria de Lurdes Rosa Freitas e Eduardo Espechit cultivam há tempos gosto pela tecelagem. Em 1976, decidiram, sem compromissos ou formalidades, ensinar bordado em áreas vizinhas de onde moram – uma chácara a oito quilômetros de Glaura, distrito de Ouro Preto. Chegavam aos locais levando kit com linhas, agulhas e bastidor procurando associações comunitárias, igrejas e grupos locais em busca de interessados no ofício. Hoje, o grupo D’Ouro Preto Bordados, que tem 28 senhoras e quatro senhores, cria peças que comercializam em feiras e pela internet (www.douropreto.com.br).

“As pessoas estão esquecendo como se borda”, observa Maria de Lourdes, que aprendeu o ofício com a mãe. Ela até considera que, aos poucos, está havendo mais atenção ao bordado, devido à maior valorização do artesanato em geral. “Mas é pouco”, pondera. Por isso mesmo, valoriza a exposição A imaginação da matéria . “Divulga o bordado e é apoio à atividade, que tem dimensão de resgate cultural, que gera renda para os artesãos e comunidades”, lembra.

Eduardo Espechit, avaliando a situação do artesanato, explica que Minas Gerais tem variedade imensa de produtos e mercado restrito, o que leva ao aviltamento do preço. Por isso defende políticas que ataquem essa questão. “Os recursos que existem estão bem aplicados, mas é pouco para mudar a situação”, observa. Programas do poder público e ONGs têm um papel importante. Tais ações, frisa, tiveram impacto positivo sobre a ação do grupo, permitindo organização, qualificação e produção que hoje está na loja do Palácio das Artes.

Nilda Muniz Faria tem 37 anos e se dedica à cerâmica há 13 anos. É a mais jovem de grupo de seis artesãs (a mais idosa tem 77 anos) que integra agremiação que no Candeal, distrito de Cônego Marinho, no Norte de Minas, faz potes de cerâmica. Quando jovem, nem sabia que morava em região que tem tradição na área. Fazendo pesquisa para a escola descobriu que, perto da cidade, havia núcleo de cerâmica criado pelo projeto Comunidade Solidária.

 “Quem for ao galpão da Associação de Artesãos do Candeal vai encontrar muita coisa bonita”, avisa Nilda, com a concordância de Maria do Socorro Leite Durães, que também veio a Belo Horizonte para a abertura da mostra no Centro de Arte Popular. Ambas valorizam a produção do pote, por ajudar a ganhar um dinheirinho a mais, o que ajuda no dia a dia. Mas também por outra característica do trabalho: cerâmica “desestressa”. É, explicam, trabalho prazeroso e que faz esquecer um pouco os problemas da vida.

Espíritos
“Quem merece uma exposição exclusiva é a carranca”, afirma Flávio Vignoli, um dos curadores de A imaginação da matéria. “Quando falamos em carranca, parece que todas são uma coisa só, mas não é assim. Viajando, vi que é iconografia muito diversificada. O alto, o médio e o baixo São Francisco são diferentes, o rio que nasce não é o mesmo que morre, cada carranca tem um detalhe, um imaginário”, observa.

Maria de Lourdes Gonçalves Lopes, de 76, concorda com Flávio Vignoli: “É peça especial, muito antiga, que as pessoas conhecem mas não sabem o significado. A cara feia é para assustar as energias más que habitam o rio”, explica. “Não precisa ficar com medo, carranca só traz coisa boa”, garante com bom humor. Desconhecimento que leva ao descaso – ela viu peças de mestres serem jogadas fora.

A artesã é de Serrinha, interior da Bahia, mora em Januária e faz carrancas há quase 50 anos. Ela era cantora, começou a namorar um barqueiro (com quem depois se casaria), “o comandante Barroso”, e para não ficar sem fazer nada passou a esculpir. “A beleza da carranca está na simplicidade, nos detalhes e na habilidade de quem a faz, em misturar aspectos de gente e bicho”, ensina.

Adão Xavier dos Santos, de 58, nasceu em Brasília de Minas, mas vive e trabalha em Pirapora. Aprendeu a fazer carranca com o pai, Sabino Xavier Carneiro, que esculpia as peças e colocava os filhos para lixá-las. E assim toda a família aprendeu o oficio. A peça, descreve, é “tipo um bicho com dentão, olho e cara brava”. Algumas são “mais feias e outras mais bonitas”.

Antigamente, recorda Xavier, era comum vê-las na proa dos barcos do Rio São Francisco, como forma de afastar o Caboclo d’Água, criatura que, se provocada, virava o barco. “Diz o povo que carranca espanta coisas ruins”, conta. “Hoje, como o rio está seco, as carrancas viraram objetos de decoração. As pessoas compram para colocar na sala”, observa. A escultura, para o artesão, é atividade das horas de folga e as peças do artista já estiveram em várias exposições.

A IMAGINAÇÃO DA MATÉRIA DE MINAS
Obras de artistas populares de Minas Gerais. Centro de Arte Popular Cemig, Rua Gonçalves Dias, 1.608, Funcionários, (31) 3222-3231. Terça, quarta e sexta, das 10h às 19h; quinta, das 12h às 21h; sábado, domingo e feriado, das 12h às 19h. Entrada franca. Até 20 de abril.

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