Mira Schendel tem obras expostas em Portugal

Mostra dá continuidade ao processo de reconhecimento internacional da qualidade estética e intelectual do trabalho da artista suíça que morou no Brasil

por Mozahir Salomão Bruck 22/03/2014 06:00
Antôno Xavier da Silva/Divulgação
(foto: Antôno Xavier da Silva/Divulgação)
‘‘O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. Sei que se trata, no fundo, do seguinte problema: a vida imediata, aquela que sofro, e dentro da qual ajo, é minha, incomunicável, e portanto sem sentido e sem finalidade. O reino dos símbolos, que procuram captar essa vida (e que é o reino das linguagens), é, pelo contrário, antivida, no sentido de ser intersubjetivo, comum, esvaziado de emoções e sofrimentos. Se eu pudesse fazer coincidir esses dois reinos, teria articulado a riqueza da vivência na relativa imortalidade do símbolo.”

O texto acima é da artista plástica Mira Schendel, que imigrou para o Brasil e neste país residiu até morrer em 1988, aos 69 anos. Traduz, profundamente, o que movia Mira como artista e como pensadora. Não se sabe precisamente quando o texto foi escrito por ela, mas está publicado no livro Mira Schendel, no vazio do mundo (Sonia Salzstein, Editora Marca D’Água, 1996). A artista vem, desde o ano passado, quando se completaram 25 anos de sua morte, recebendo atenção especial dos críticos e estudiosos da arte contemporânea em vários países.

Foi depois do fim da Segunda Guerra, mais exatamente em 1949, que Mira Schendel, que nasceu na Suíça, imigrou para o Brasil. Filha única de um judeu da então Tchecoslováquia, comerciante de tecidos, e de uma modista italiana de origem judaica mas católica praticante, Myrrha Dagmar Dub nasceu em 1919, em Zurique. Os pais se separaram três anos depois e Myrrha acabou por se fixar em Milão, onde a mãe se casou novamente, agora com o conde Tomaso Gnoli, poeta e diretor da Biblioteca Nazionale Braidense. Foi em Milão que passou a infância e boa parte da adolescência: vivia em um apartamento no Palazzo di Brera, convivendo com artistas, críticos e todo o público que buscava a biblioteca e a coleção de arte de sua pinacoteca.

Em 1938, quando Mira estudava filosofia e belas- artes, a Europa assistiu ao endurecimento do fascismo. Foi forçada, em função de um decreto de Mussolini que retirou a nacionalidade italiana aos cidadãos de ascendência judaica, a abandonar os estudos. Com a iminência da guerra e avanço do nazi-fascismo, resolveu fugir da Itália. Conta-se que teria atravessado os Alpes a pé, passando pela Áustria e Iugoslávia, o que naquela época não foi tão incomum assim para judeus em fuga. Depois do fim da Segunda Guerra, já casada com um croata de ascendência austríaca, viveu com o marido como deslocados de guerra em Roma até 1949, quando decidiu migrar para o Brasil . Em 1953, fixou-se em São Paulo, onde viveu e trabalhou. “Comecei a pintar no Brasil”, registrou Mira em suas memórias. “A vida era muito dura e não havia dinheiro para telas e nem pincéis, mas costumava comprar materiais baratos e comecei a pintar como louca. Para mim era uma questão de vida ou morte.”

Uma característica fundamental nas formas riscadas e estruturadas por Schendel talvez seja a de uma profundidade que ecoa de suas inquietações de natureza filosófica. A linguagem parecia ser, para Schendel, um desafio permanente. Questões como o imediatismo da experiência, a “cotidianidade” da existência, presentes inicialmente em suas obras, possivelmente vieram de suas leituras de Heidegger, acreditam alguns críticos, bem como também as leituras de Wittgenstein e Newman a teriam inspirado na criação de O retorno de Aquiles, de 1964, considerada uma de suas obras mais enigmáticas.

Amante da filosofia, Schendel era admirada por filósofos. Tornou-se amiga do filósofo e linguista Max Bense e admirada por Vilém Flusser, cuja análise sobre a obra de Mira é recorrente objeto de estudo de pesquisadores da filosofia e da arte. Flusser escreveu três artigos sobre as obras de Mira: “Diacronia e diafaneidade (I e II)”,  publicados no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, e “Bodenlos”, que é um dos capítulos da autobiografia filosófica do autor.

Londres e São Paulo A Fundação Serralves, na cidade do Porto (Portugal), dá sequência a um circuito de exposições internacionais das obras de Mira Schendel. A primeira exposição ocorreu no Tate Modern, de Londres. O circuito de exposições tem recebido a curadoria conjunta da Pinacoteca de São Paulo, com Taisa Palhares, e de Tanya Barson, curadora do Tate, de Londres, considerado o museu de arte contemporânea mais visitado do mundo. A exposição permaneceu em cartaz entre setembro do ano passado e janeiro. A previsão é de que a exposição chegue ao Brasil, na Pinacoteca de São Paulo, em julho próximo, depois que deixar o Museu Serralves, no fim de junho.

Para Taisa Palhares, o pensamento filosófico em sentido amplo, ou seja, a teologia, a filosofia ocidental e o pensamento oriental, marca profundamente a obra da artista plástica. “Para Schendel, a arte era mais uma maneira, talvez a mais completa, pois envolve a percepção sensível e a matéria, de se pensar o ser no mundo. Por isso, o seu trabalho não pode ser visto como uma ilustração de problemas filosóficos, mas antes como filosófico em si, uma indagação filosófica do mundo em sentido mais amplo e mediante os meios que lhe são próprios”, acrescenta.

No entendimento da curadora da Pinacoteca de São Paulo, o trabalho de Mira Schendel se manteve com grande frescor porque evitou se restringir a uma discussão específica ou restrita a uma corrente artística. “O que permeia seu fazer artístico, salienta, é antes um questionamento permanente sobre noções mais gerais, filosóficas se se quiser, como a relação entre o indivíduo e o espaço do mundo, entre imanência e transcedência, entre o corpo e a linguagem, entre outras.”

A exposição da Serralves reúne mais de 200 pinturas, esculturas e desenhos da artista, alguns apresentados pela primeira vez, e são uma oportunidade inédita para melhor conhecer a obra de Schendel: pinturas até então pouco conhecidas, da década de 1950; as esculturas em papel de arroz, cuja série recebeu o nome de Droguinhas, que foram produzidas na metade dos anos 1960; e Objetos gráficos, do fim desta mesma década. Em exposição também as instalações Ondas paradas de probabilidade e Variantes, também produzidas naquele que é considerado o período mais fértil de criação de Mira, as décadas de 1960 e 1970.

O crítico de arte norte-americano Guy Brett conheceu Mira Schendel na década de 1960, quando veio para o Brasil e escrevia artigos e críticas de arte para o The Times. Falando na apresentação da exposição da Serralves, Brett assinala a despretensão de Schendel como artista e como uma intelectual apaixonada pela filosofia. “Ao fim de todos esses anos, ela está finalmente recebendo fora do Brasil o reconhecimento que merece com uma exposição que começou no Tate Modern, muito bem organizada, que mostra a gama e a variedade de coisas que lhe interessavam. Uma coisa interessante sobre Mira é que era uma pessoa muito bem-humorada, não era uma filósofa pretensiosa. Era fascinada pela filosofia e pelo pensamento de modo geral, mas não de um modo pretensioso. Muitas vezes brincava sobre o que fazia de uma forma muito engraçada. E, também, era uma pessoa muito tolerante, porque se o trabalho dela fosse criticado ela dizia: ‘Não se preocupe, cada pessoa vê como pode’. É uma maneira sábia de colocar as coisas, fazia parte da impressão que ela dava aos outros”, destacou o crítico americano.

Mozahir Salomão Bruck é professor da PUC Minas

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