Bernardo Kucinski volta a abordar os duros anos da ditadura militar no Brasil

Depois do aclamado K., autor lança o livro de contos 'Você vai voltar pra mim'

por André Di Bernardi Batista Mendes 22/03/2014 06:00
TV Brasil/Divulgação
(foto: TV Brasil/Divulgação)
A editora Cosac Naify acaba de relançar K., do jornalista Bernardo Kucinski, obra aclamada pela crítica e finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura de 2012. E para lembrar os 50 anos do golpe militar no Brasil, a editora também lança 'Você vai voltar pra mim' – e outros contos. Primeiro livro do gênero do autor, o livro traz 28 histórias curtas sobre aqueles anos duros de medo e repressão. 'K.', romance de estreia de Kucinski, narra a história de um pai em busca da filha que desapareceu, como tantos outros, durante a ditadura no Brasil. A narrativa a um tempo enxuta e sensível de Kucinski é feita de capítulos quase independentes, apresentando vários ângulos de uma mesma história – a história da ausência e da impunidade.

Já em 'Você vai voltar pra mim', Kucinski monta um grande e pungente retrato de uma época, consolidando a presença das duas obras no cenário da literatura e da história política brasileira. A inspiração para os contos surgiu em depoimento que o autor ouviu, no fim de 2013, ao assistir a uma sessão da Comissão da Verdade paulista. Os contos são baseados em fatos, trabalhados no plano de uma narrativa ficcional. Kucinski tenta transmitir – e consegue – a atmosfera da época da ditadura no Brasil, com toda arbitrariedade, insegurança e medo presentes naqueles dias de sonhos e esperanças frustradas. O texto comove e, o mais importante, faz refletir. O autor entrelaça invenção e realidade e busca nos confins da memória um rol de espinhos e acaba encontrando também muitas sementes.

O bom é que Kucinski encontrou e preferiu a coragem de seguir e atiçar, de perto, as consequências de um passado que muitos prefeririam esquecer. Encarar intensidades da altura de um fogo requer sensibilidade, força e muita generosidade. Kucinski mostra que é preciso falar para, de certa forma, expurgar. Assim, nesse processo, a alma, qualquer alma, o espírito dos homens lúcidos torna-se mais apurado, torna-se mais amplo e muito mais interessante. Kucinski fala sobre o périplo de nossas experiências e agruras humanas. Kucinski fala de política.

Kucinski não quer se livrar de um passado pernicioso, nocivo em todas as suas faces de luta e discórdia. Kucinski, ao contrário, tira a casca de uma ferida que não cicatriza para que do sujo possam surgir fagulhas de estrelas. É preciso reinventar a melhor das fogueiras, o melhor do fogos, aquele feito de convívio, afeto e, principalmente, justiça. Por mais que doa, é sempre bom saber, conhecer para melhor mensurar estragos e acertos. O homem ama e age melhor quando conhece a terra de suas possíveis sementes.

A música mais linda tantas vezes nasce dos acordes mais tristes. O tempo, a palavra é, no caso, nossa melhor e mais forte aliada. É que as espirais do tempo às vezes traçam curvas inesperadas. Nada é fixo como pedra, como querem tantos homens de espírito fardado. Tudo é transitório, frágil, como a vida, do rio ao mar, no turbilhão das incertezas que regem tantos desencontros. Kucinski puxa do passado uma ponta, um novelo que sugere outros caminhos, promissores em termos de perspectivas luminosas. Quem sabe? Os jovens deveriam ler esses dois livros.

Dor e ironia Kucinski fala de como certos traumas afetam os personagens, pessoas que perderam filhos, maridos, irmãos e irmãs (como é o caso de Kucinski, que, no livro 'K.', escreve sobre experiências pessoais) durante a ditadura. Kucinski fala, não sem humor e ironia (na medida certa), da senhora que nunca desistiu de procurar o marido, entre mendigos e ruas desertas; da beata Vavá, que, com poderes mediúnicos de mãe, salvou milhares das mãos de torturadores; da família destroçada que tenta resolver (e não consegue) suas pendências em encontros com psicólogos e terapeutas; da criança que, quando crescer, planeja matar, com uma espada enorme, todos os seus monstros, e todos os homens maus.

O real transformado em literatura é faca, arma branca, é uma espécie de revólver que não atira, mas atinge, sem maiores ameaças, valendo-se da arte das sutilezas. A vida é feita de sombras e muitas luzes. Kucinski escreve com a liberdade de um pássaro. E isso é muito bom.

Em 'Você vai voltar pra mim', Kucinski apenas conta, sem dramatizar mais que o necessário. Suas histórias mostram a cara de um país. O Brasil é um lugar enorme, e nele, não se engane, cabem a alegria, a latência de algo novo e bom, mas também cabem neste caldeirão perversidades inimagináveis, preconceitos, conivências, arbitrariedades e muita, muita injustiça, que gera asco e revolta. Portanto, termos autores como Kucinski é, hoje, imprescindível.

Não por acaso, as primeiras páginas do livro 'Você vai voltar pra mim' são negras, de um breu desconcertante que remete a noites sem estrelas, a astros sem patentes, deslocados em termos de céu. São pertinentes as perguntas de Maria Rita Kehl no prefácio de Você vai voltar pra mim: “Quando termina a escrita de um trauma? Quantos anos, ou décadas, são necessários para que um fato traumático se incorpore à memória social sem machucar nem se banalizar?”. E continua: “Passado um tempo subjetivo em que silêncio e estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e testemunhas se põem a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade”. Para Bernardo Kucinski, chegou a hora de mais dizer.

K.

• De Bernardo Kucinski
• Cosac Naify
• 192 páginas, R$ 29,90


VOCÊ VAI VOLTAR PRA MIM
• De Bernardo Kucinski
• Cosac Naify,
• 192 páginas, R$ 29,90

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