Brasileiros têm à frente o desafio de efetivamente aprender a conviver com a diferença

Sociedade ainda é ancorada numa história de privilégios de classe e de profunda desigualdade

por Janaina Maquiaveli Cardoso 22/03/2014 06:00
Beto Novaes/EM/D.A Press
(foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
O entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e as ruas de Botafogo, no Rio de Janeiro, eram os lugares onde os Novos Baianos davam os seus rolês no comecinho dos anos de 1970, muitas vezes para evitar encontros indesejados com a polícia. 'Dê um rolê', a canção, foi lançada em compacto pelo grupo e virou sucesso na voz de Gal Costa, em 1971, pouco antes de os integrantes da trupe de “cabeludos”, “manjados”, “dando pinta”, “dando recado” – assim autointitulados pelo músico Paulinho Boca de Cantor numa entrevista controversa de uns três anos atrás à revista 'Trip' – se mudarem para o mítico Cantinho do Vovô: um sítio isolado nas proximidades de Jacarepaguá, Zona Oeste carioca, onde a moçada provavelmente mais antimaterialista na cidade instaurou, senão a primeira, uma das mais autênticas comunidades alternativas do Brasil.


Mais de 40 anos se passaram e as moçadas que perambulam pelas grandes cidades brasileiras são outras; seus rolês, rolezinhos, roletaços também. Por ora, ainda não parecem ter sido investigados, com a devida representatividade, quem são os integrantes dos grupos em movimento que ganharam evidência nos principais veículos de comunicação do país sob o título curioso de “fenômeno do verão”. Com isso, pouco se poderia afirmar acerca do que define, propriamente, suas formas usuais ou almejadas de sociabilidade urbana, das quais o rolezinho parece ser apenas uma parte. Apenas o 'Samba do sociólogo' louco pode afirmar que “índio quer apito, mas não quer mosquito”, de modo que talvez tenhamos de nos limitar a presumir que os jovens, em seus rolezinhos, só querem mesmo dar uma volta por aí. Quem sabe em busca de quanto vale um gosto?

O fato é que a “geral” começou “a se trombar” no Shopping Itaquera, em São Paulo. Replicou-se em espaços de consumo até então elitizados em diversos pontos da capital paulistana; viu seus rolezinhos se espalharem por cidades como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e outras mais. Sobre o que saiu a respeito na mídia, na média e na moda, podemos e devemos pensar e agir. A Associação dos Lojistas de Shopping de São Paulo (Alshop) marcou encontro no Planalto numa quarta-feira, 29 de janeiro, com o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. A associação queria que o governo federal impedisse a realização dos rolezinhos. As ministras da Secretaria de Promoção da Igualdade Social, Luíza Bairros; da Cultura, Marta Suplicy; e da Secretaria Nacional da Juventude, Severine Macedo, também estiveram lá. Espera-se que, do encontro, resultem projetos com vistas à criação de espaços de lazer capazes de comportar “este novo público”.

Para o presidente da Alshop, Nabil Sahyoun, há muitos espaços ociosos em São Paulo, por exemplo, que poderiam ser utilizados para esse fim, uma vez que as restrições de convivência dentro dos shoppings resultam apenas da preocupação com a segurança dos locais e de seus frequentadores. O melhor, segundo ele, seria definir espaços exclusivamente destinados aos jovens desta nova classe média brasileira. Não é pouca coisa, uma vez que, respaldado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Ricardo Vilella Marino, chefe-executivo para a América Latina do Banco Itaú-Unibanco, anunciou no Fórum Econômico Mundial, em Davos, que até o final de 2016, 75% dos brasileiros estarão na classe média. Se na nova ou se na velha, recuso-me a perguntar, sobretudo porque Jessé Souza, renomado sociólogo, professor e pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora, já nos deu a resposta em sua mais recente publicação, 'Os batalhadores brasileiros'. O economista Márcio Pochmann, em 'A década dos mitos', também já havia apontado, antes disso, outros equívocos de natureza similar, repetidos à exaustão Brasil afora, ao longo dos anos 1990.

Acertos ou desacertos conceituais à parte, o fato é que uma pesquisa divulgada pelo Datafolha revelou: 82% dos paulistanos são contra rolezinhos. Segundo 77% dos entrevistados, o objetivo dos rolezinhos é causar tumulto. Logo, para 73% deles, a polícia deve ser acionada, a fim de evitar confusão, embora 73% também tenham afirmado que os shoppings não têm o direito de escolher ou restringir quem pode ou não frequentá-los. Não parecem contraditórias a primeira e a última afirmações? “Ou isto ou aquilo”, título daquele poema tão bonitinho de Cecília Meireles, não parece ser a praxe, no Brasil, pelo menos quando se trata da necessidade de se emitir e sustentar opiniões. Talvez porque sejamos mesmo cordiais e não consigamos incorporar o dissenso como parte do debate público nacional, prescindimos do que costumam exigir as importantes decisões: investigar as múltiplas condições externas de um problema antes de decretar a solução.

Sentados à sombra de uma sociologia compreensiva e também comparativa, deparamo-nos com algo que parece ter-se tornado próprio às grandes cidades brasileiras, em suas violentas configurações: um reconhecimento da diferença quase nunca atrelado à alteridade. Admitem-se os outros desde que não seja preciso conviver com eles. “A lei natural dos encontros”, transcendente noutra linda canção dos Novos Baianos, transformou-se em violência simbólica quando o Brasil esteve diante de um dilema imanente ao pensamento e à prática dos cientistas sociais: o dilema do eu e do outro, desta vez aplicado aos que, em seus rolezinhos, viram o que parecia possível transmutado em audácia ao adentrar os espaços simulados de convívio social da (desde sempre) classe média brasileira. O que mais poderia resultar dos encontros aí ocasionados?

Sabemos tanto quanto costumamos celebrar que as grandes cidades são, por excelência, o espaço da diferença. A possibilidade de nos depararmos com diversas etnias, culturas, idiomas, opções de consumo e entretenimento, grupos e práticas sociais é o que mais nos atrai na vida metropolitana, sobretudo quando se trata das cidades europeias e norte-americanas. Por que então insistimos, por aqui, em reconhecer o outro como quem busca nele uma inferioridade intrínseca?

COEXISTÊNCIA Pois bem: um dos mais importantes paradigmas das ciências sociais, sobretudo na sociologia urbana, é que as cidades são – ou pelo menos deveriam ser – o lugar onde a diferença e a diversidade podem coexistir, harmoniosamente ou não. Essa é a natureza do espaço urbano, malgrado as iniciativas governamentais formuladas e reinventadas desde o final do século 19, a maioria pautada pelo higienismo, e que não têm resultado noutra coisa senão em formas muito similares de atração e subsequente repulsa das diferenças, instaurando modelos repetitivos de segregação, ou nos termos do sociólogo uruguaio Rubén Katzman, de sedução e abandono.

Desta maneira, rejeitamos um dos aspectos mais caros às sociedades contemporâneas e, portanto, às sociabilidades que lhes são características: que as relações sociais e interacionais possam se deslocar de seu contexto original, reestruturando-se por meio de novas dimensões de espaço e tempo e, assim, retroalimentando aquilo que confere à cidade o seu encanto: a diversidade.

Isso não significa que possamos esperar que as cidades sejam o lugar da igualdade; seria, no mínimo, contraditório. Mas formular projetos e fomentar atitudes que promovam direitos mais equânimes de acesso à cidade, dentro ou fora de seus shopping centers, com isso podemos e devemos sonhar. Sobretudo porque as relações de interação e sociabilidade, no espaço urbano, sempre foram um polo de grandes tensões e disputas.

Sem que se pretenda estabelecer uma relação de causalidade, mas de correlação, o modo como os rolezinhos repercutiram nos meios de comunicação social, no Brasil, poderia ser mais bem entendido se levássemos em conta que o direito tão restrito à cidade revela as raízes mais profundas de nossa desigualdade. Olhamos para os rolezinhos de perto e de longe e nos deparamos com a trama aparentemente nova de velhas manobras sociais, tão facilmente reconhecíveis quando distinção e poder, ou seja, superioridade social e moral, estão em jogo. Os resultados dos estudos etnográficos empreendidos pelos sociólogos Norbert Elias e John Scotson no início dos anos 1960 numa pequena comunidade da Inglaterra, batizada com o nome fictício de Winston Parva, podem ser encontrados no livro 'Os estabelecidos e os outsiders'. Trata-se de um estudo sociológico da maior relevância para aqueles que buscam compreender os laços que ligam diferentes grupos sociais, sobretudo quando em relações simultâneas de proximidade e oposição.

Esse tipo peculiar de tensão tornou-se evidente quando, por meio dos rolezinhos, um outro grupo social quis adentrar espaços de sociabilidade antes restritos a camadas econômica, cultural e socialmente estabelecidas, no Brasil. A posição da Alshop, bem como de mais de 70% dos entrevistados pelo Instituto Datafolha, em São Paulo, parecem saídas do livro de Elias, pois desvelam os conflitos entre os estabelecidos e os outsiders que as mudanças na economia brasileira parecem ter instaurado, nos últimos anos, mediante a promessa não cumprida de mobilidade e mudança social.

Trata-se de um tipo de tensão que imprimiu aos integrantes dos rolezinhos o papel de “desordeiros”, “indisciplinados” e “indignos de confiança”, a ponto de se ter chegado a exigir e a obter, por meio de medidas judiciais, o que em sociologia chamamos de “evitação de contato”. Nada poderia ser mais indicativo das cartas que são postas à mesa quando se trata de jogos de poder. Especialmente quando um dos jogadores pretende revisar a maneira como os benefícios dele (do poder) resultantes costumam ser histórica e socialmente distribuídos.

De modo que, a pretexto do “fenômeno do verão”, talvez seja o momento de instaurarmos reflexões um pouco mais conscientes e consistentes sobre as raízes que sustentam a internacionalmente reconhecida desigualdade social brasileira, não?

Enquanto a disparidade for uma espécie de lastro para o privilégio e o prestígio das elites e de uma pequena, convenhamos, classe média, no que diz respeito aos benefícios de renda, educação, estilo de vida, saúde, ocupação, acesso à Justiça e à cidade, tal como lhe são próprios, nem um ponto poderá ser acrescentado ao percentual de integrantes da classe média brasileira, ao contrário do que se queira apresentar nos encontros internacionais dos quais o Brasil tem, cada vez mais, participado.

A desigualdade brasileira e os graus alarmantes de estigmatização que ela impõe àqueles que repudia e exclui e não apenas no sentido de classe, vale dizer, são problemas endógenos, em nossa estrutura social, e refletem-se por todos os lugares onde se passam as nossas tensas sociabilidades urbanas. No sentido inverso, comportar a diferença desde que ela esteja devidamente instalada nalgum cantinho do vovô, isso, sim, parece-me assustador.

Janaina Maquiaveli Cardoso é doutora em ciências sociais pela PUC Minas. Em 2010, foi pesquisadora visitante na City University of New York. É autora de Cidades em miniatura: a revitalização urbana do Meatpacking District, em Nova York, e da Região da Luz, em São Paulo (Editora Comunicação de Fato).

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