Experiência de transporte coletivo gratuito durante feriados e fins de semana se mostra viável

Iniciativa contribui para democratizar o acesso aos espaços públicos

por 15/03/2014 00:13
André Veloso, Fernanda Regaldo e Roberto Andrés

Thiago Costoli/Divulgação
(foto: Thiago Costoli/Divulgação)
Em janeiro deste ano, 43 blocos de carnaval de rua solicitaram à BHTrans alterações de mobilidade urbana no carnaval de Belo Horizonte. A proposta, no espírito de um carnaval sem carros (livre da combinação explosiva de bebida com direção) e amplamente acessível, tinha três pontos principais, que estruturam esse texto: restrição da entrada de carros no Bairro Santa Tereza, limitada a moradores e comerciantes locais; planejamento conjunto com os blocos para aumento da oferta dos ônibus durante todo o carnaval; e gratuidade universal do transporte coletivo durante o carnaval, oferecendo à população uma alternativa de deslocamento real.

A restrição de carros em locais onde há aglomerações de pessoas nas ruas é uma prática cada vez mais comum em diversas cidades. As ruas de pedestres oferecem liberdade e tranquilidade para as pessoas usufruírem a cidade de diversas maneiras. A rua fica menos poluída, menos barulhenta, menos perigosa .

Em muitas cidades, diversas ruas e avenidas do centro deixaram de ter carros nos últimos anos. Em Nova York, essas ruas ganharam espaços para recreação, mesas, bancos, ciclovias. Em Londres, já há bairros inteiros em que o bólide metálico não pode entrar. Ali as pessoas transitam em bicicletas, bondes elétricos, ônibus ou barcos. Nas cidades em que o Dia Mundial sem Carro – 23 de setembro – é levado a sério pelo poder público, vive-se uma experiência de restrição absoluta de automóveis por um dia inteiro e o resultado é que nessas 12 horas a cidade é outra – tranquila, prazerosa e afetiva.

Se os governantes no Brasil parecem desconectados das políticas urbanas contemporâneas, talvez o carnaval pudesse ser um momento de oferecer-lhes uma chacoalhada. E os blocos de carnaval, que em Belo Horizonte estão anos-luz à frente do poder público, perceberam isso. A festa momesca, que aqui cresceu pelo empenho da população, pode ser um experimento-piloto de outros modos de estar na cidade, em que a liberdade dos corpos ganha as ruas.

A lógica de financiamento do transporte coletivo no Brasil é nefasta. O exclusivo financiamento do sistema pela tarifa paga pelo usuário gera uma pressão sobre as linhas e horários “menos lucrativos”. Para o empresário, quanto mais cheio o balaio, melhor. Quem mora longe do Centro tem poucas opções de horários. Nos fins de semana e feriados, em que as pessoas têm tempo livre para usufruir a cidade, a oferta do transporte coletivo é drasticamente reduzida. Esse sistema ineficiente, injusto e desigual não é a única maneira de operar. Em diversas cidades do mundo, o transporte é subsidiado em mais de 50% de seus custos.

O cinismo dos tecnocratas de plantão costuma dizer que não há “demanda” para o transporte coletivo nos fins de semana. Mas eles têm memória curta – ou jogam com a memória curta da população. Na década de 1990, graças aos recursos excedentes da extinta Câmara de Compensação Tarifária, que à época era controlada pelo poder público, Belo Horizonte teve ônibus gratuito em alguns feriados. Foi uma política de incentivo à mobilidade da população. E o resultado? A “demanda”, que para alguns não existe, foi duas vezes maior do que a dos dias de semana. As pessoas foram a parques, ao zoológico, ao Centro ou a shoppings, visitaram parentes que moram em bairros distantes ou aquele amigo que não viam havia muito tempo.

Os mecanismos das nossas cidades funcionam em torno do trabalho e da produção. É como se a vida se resumisse a isso. Mas, quando estes mesmos mecanismos se voltam para o tempo livre, o lazer ou o simples prazer de estar no mundo, a “demanda” se mostra enorme. Foi o que ocorreu com os experimentos do ônibus gratuito em feriados. E é o que tem demonstrado o crescimento do carnaval de rua em BH. Por que não, então, adequar os mecanismos da cidade, como o sistema de transporte, para o carnaval? Por que não ajustar linhas, em itinerários e horários, para atender os foliões/cidadãos, para conectar os blocos, os shows, os parques, as praças?

Tarifa Zero e acesso à cidade Hoje, as linhas de ônibus operam nos fins de semana e feriados com baixa ocupação. Há um desperdício de recursos da sociedade para manter em operação linhas que são pouco utilizadas por conta do desestímulo gerado pela cobrança de tarifa, pelo elevado tempo de espera nos pontos de embarque e pela ausência de atendimento a inúmeros bairros da capital. Uma família com quatro membros que toma duas conduções para visitar algum atrativo da cidade gasta quase um quarto de um salário mínimo saindo de casa um domingo por mês.

O Movimento Tarifa Zero apresentou à Câmara Municipal, em novembro de 2013, proposta de emenda orçamentária para a gratuidade do transporte no fim de semana (com operatividade idêntica à dos dias de semana). A proposta não chegou a ser votada, pois foi vetada pelo presidente da comissão de orçamentos, o pastor Henrique Braga. A Câmara Municipal perdeu a chance de discutir e fazer avançar a importante questão do acesso à cidade e do transporte como direito social.

A proposta não saiu, mas foi retomada pelos blocos de carnaval, que, mais uma vez, saíram à frente. A proposta de um sistema de transporte gratuito durante o carnaval democratizaria o acesso às atividades carnavalescas nos quatro cantos da cidade, inibiria o uso de carros e fortaleceria um aspecto importante dos dias de festa, que é a generosidade, a doação, o desapego.

A busona sem catracas Nos últimos cinco anos, diversos blocos construíram, com bravo empenho e sem nenhum interesse financeiro, o carnaval de BH. Não foi pedida nenhuma ajuda ao poder público. Os blocos e seus foliões simplesmente saíram às ruas. Agora, o gesto se repete. Como a BHTrans tomou um mês para emitir uma resposta evasiva e melancólica à solicitação dos blocos, o Movimento Tarifa Zero BH decidiu colocar um ônibus nas ruas, sem catracas e cheio de amor, para transportar os foliões gratuitamente. Foi uma proposta de intervenção na cidade, de diálogo com toda a população.

Enquanto o poder público diminuía a frota e deixava de atender as periferias no carnaval, nossa busona sem catraca rodou toda a cidade: passamos pelos bairros Salgado Filho, Nova Suíça, Gutierrez, Aglomerado da Serra, Zilah Spósito, ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, além do trajeto circular pelo Centro da cidade. De foliões a transeuntes desavisados, de senhoras idosas a crianças de colo, um sem-número de pessoas e personagens passaram pelo coletivo com os mais diversos propósitos, mostrando a infinidade de encontros que essa outra lógica de transporte pode oferecer.

Ah, o que seria dos foliões que foram domingo de manhã ao Pena de Pavão de Krishna, no Salgado Filho, e depois se deslocaram para o Tico Tico Serra Copo, no Aglomerado da Serra, se dependessem da eficiência da BHTrans! A empresa que gere o trânsito na cidade nem sequer se dignou a receber os foliões, quanto mais a tentar entender a dinâmica do carnaval de rua e ajustar trajetos e horários.

E, como num bom carnaval, a espontaneidade da subversão se espalhou. Com a existência concreta de um ônibus sem catraca na cidade, não foi pequeno o número de pessoas que praticou seu protesto individual e entrou nos ônibus da BHTrans sem pagar. Aliás, o “pulão” sempre existiu e continuará existindo. Enquanto o transporte se colocar como uma mercadoria, quem puder irá exigir o seu direito na prática.

Como os blocos de carnaval, que em 2009 eram três e hoje são cerca de 200, que a iniciativa do ônibus Tarifa Zero se multiplique em um conjunto de ações dedicadas à livre fruição dos espaços da cidade, num convite ao deslocamento descompromissado, à liberdade de ir e vir, a uma urbanidade mais afetiva.

Atrás da busona sem catracas só não vai quem já morreu.

André Veloso, Fernanda Regaldo e Roberto Andrés são membros do Tarifa Zero, coletivo com o qual o texto foi elaborado.

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