Esses dois acontecimentos podem ser considerados como crônicas de um golpe anunciado. Um golpe que se concretizou em 1964 com a deposição de Goulart e a tomada de poder pelas Forças Armadas. Nessa ocasião, os militares que participaram do golpe político articularam-se com a UDN e alguns governadores de estado. Foram apoiados pelo empresariado nacional e internacional, setores conservadores da Igreja Católica, latifundiários, segmentos das classes médias que viviam aterrorizados com a possibilidade de o Brasil se transformar em um país socialista, governo dos Estados Unidos e grande imprensa, em especial os jornais O Globo, Tribuna da Imprensa, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo.
Era o tempo da Guerra Fria, caracterizada por forte bipolaridade entre socialismo e capitalismo. Esse conflito ideológico e político também alimentou forte tensão interna no Brasil. Em janeiro de 1963, o sistema de governo, depois da realização de um plebiscito, voltou a ser presidencialista. João Goulart recuperou a plenitude de seus poderes e a partir dessa data aprofundou a adoção de políticas governamentais contrapostas aos interesses de empresas internacionais e dos grandes proprietários de terras.
Essa orientação governamental era apoiada e exigida por efervescentes movimentos sociais urbanos e rurais, em especial pelos sindicatos e ligas camponesas. A oposição ao governo entendia que o presidente Goulart extrapolava ao adotar um perfil “populista e demagógico”, pois além de não controlar os movimentos sociais, com eles dialogava com frequência, prejudicando a paz social e as condições de governabilidade.
Intervenções militares sempre ocorreram na história da República brasileira. Mas antes de 1964, com exceção dos primeiros anos sequentes à proclamação da República, não chegaram a levar as Forças Armadas ao poder. Em março de 1964, contudo, ao derrubar um presidente constitucionalmente eleito e empossado, os militares assumiram o governo do Brasil, contando com o apoio de muitos políticos e tecnocratas. Governaram por 21 anos.
A ditadura restringiu de forma crescente o exercício da cidadania e reprimiu com violência as manifestações de oposição. Pela ordem foram cinco os governantes militares, um era marechal e os demais generais: Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Batista de Figueiredo. Os historiadores costumam dividir o somatório do período desses governos em três fases. A primeira começa e 1964 e vai até 1968. Foram esses os anos de institucionalização e consolidação do autoritarismo.
Entre as medidas mais importantes desse período destacam-se: prisões de cidadãos civis e militares que não apoiaram o golpe de Estado; fim da estabilidade no emprego e criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), intervenção em mais de 400 sindicatos; proibição de greves; início da promulgação dos atos institucionais e da cassação de mandatos políticos; estabelecimento de eleições indiretas para presidente da República, governadores de estado e prefeitos das capitais; dissolução do pluripartidarismo e criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena), que reuniu os governistas, e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que abrigou a oposição autorizada. E por fim, aprovação pelo Congresso Nacional de Constituição centralizadora e autoritária, que entrou em vigor em janeiro de 1967.
Nessa fase, embora a União Nacional dos Estudantes (UNE) estivesse na ilegalidade, o movimento estudantil atuou, de forma contundente, no campo oposicionista, realizando congressos e passeatas. A mais expressiva foi a dos 100 mil, em 1968, no Rio de Janeiro. Reuniu, além de estudantes, artistas, intelectuais e parcela do clero progressista. Em outubro daquele ano, entretanto, o movimento estudantil sofreu forte desarticulação em decorrência da repressão que desbaratou o congresso da UNE em Ibiúna, no interior de São Paulo. Na ocasião, os mais importantes líderes do movimento estudantil foram presos.
Também nesse período, movimentos culturais tornaram-se canais de expressão de descontentamento e oposição, em especial no campo da música popular, que fez dos festivais da canção brasileira espaços de protesto. O teatro também contribuiu para manifestação de insatisfação com o regime militar. Muitos espetáculos, em especial os encenados pelo Opinião e Arena, traduziam discordância com um governo cada vez mais ditatorial.
Também nessa fase, João Goulart e Juscelino Kubitschek aliaram-se ao antigo adversário, Carlos Lacerda, e formaram um movimento que ficou conhecido como Frente Ampla. Seu objetivo era congregar as forças de oposição ao governo federal. A iniciativa, de grande valor simbólico, não rendeu frutos, pois foi reprimida.
O fim do período de institucionalização aconteceu como desdobramento mais imediato do pronunciamento do deputado do MDB Márcio Moreira Alves, na Câmara dos Deputados, também no ano de 1968. O parlamentar fez severas críticas ao governo e aos militares, inclusive no campo dos direitos humanos. Na sequência, o Congresso Nacional foi fechado e o Ato Institucional nº 5 editado.
Repressão e tortura A promulgação do AI-5, em dezembro daquele ano, marcou o início da segunda fase do regime militar, representou o fechamento completo do regime político e consolidou a ditadura ao dotar o governo de prerrogativas institucionais que levaram à ampliação da repressão e à generalização da prática da tortura.
Esse período correspondeu à fase do denominado “milagre brasileiro”. Nessa época, o Produto Interno Bruto (PIB) chegou ao patamar de 12% ao ano. A propaganda governamental divulgava a imagem de um Brasil potência, pacificado e presenteado com a adoção do mar das 200 milhas, a construção da Ponte Rio-Niterói e o início de construção da Transamazônica. Essa estrada jamais foi concluída, mas deixou um rastro de miséria e desmatamento.
Esses foram também os anos de maior repressão às oposições. O alvo principal eram as organizações que atuavam na clandestinidade. Seus militantes foram presos, torturados e processados. Centenas deles morreram ou “desapareceram”. Muitos corpos até hoje não foram localizados. A oposição legal efetiva também não foi tolerada e novas cassações de mandatos políticos proliferaram. Foi um tempo em que uma forte censura às artes e à imprensa limitou a expressão artística e política. Eram os anos de chumbo.
Por volta de 1976 iniciou-se a terceira fase do ciclo autoritário, que coincidiu com o fim do milagre econômico. O aumento vertiginoso dos preços do petróleo e a recessão da economia interferiram negativamente na economia e geraram grande insatisfação popular.
O general presidente Ernesto Geisel sucedeu ao governo Médici. Influenciado por Golbery do Couto e Silva, fundador da Escola Superior de Guerra e do Serviço Nacional de Informações, previu dificuldades crescentes e custos políticos altíssimos para o governo caso os militares permanecessem no poder por um período indefinido. Resolveu então, embora com discordância de seus pares, que controlavam o sistema repressivo, iniciar um processo de “distensão lenta, gradual e segura”.
Ao término do mandato de Geisel, a realidade política brasileira passara por transformações. A repressão diminuiu e as oposições, ainda que de forma tímida, começaram a se reorganizar. Fato expressivo do novo ciclo que se iniciava foi a primeira greve do ABC paulista, em maio de 1978, já no governo Figueiredo. O movimento sindical estimulou a proliferação de inúmeros movimentos sociais e políticos que lutaram pelo retorno da democracia política.
Em janeiro de 1979, a revogação do AI-5 e de outros atos institucionais entrou em vigor, o que facilitou a reorganização das forças de oposição e acelerou o processo de liberalização política. O grande marco dessa fase foi, depois de crescente campanha pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, a aprovação da Lei da Anistia de 1979, que embora limitada e conexa, possibilitou a abertura das prisões e o retorno ao país de milhares de exilados políticos.
Outro fato marcante no processo de democratização foi o restabelecimento do pluripartidarismo. No ano de 1982 ocorreram eleições para governadores de estado e na sequência uma grande campanha política/popular, denominada Campanha pelas diretas, que defendia o retorno das eleições diretas para a Presidência da República.
A década de 1980 marcou o final do ciclo ditatorial. A campanha pelas Diretas já, que reuniu milhões de brasileiros, mesmo derrotada no Congresso Nacional, preparou o caminho para a eleição, realizada pela via indireta e elegeu um presidente civil, Tancredo Neves. Que não foi empossado em decorrência de sua morte.
Mas esse processo de democratização, marcado por avanços e recuos, só culminou quando da realização de uma Assembleia Nacional Constituinte e da promulgação de uma nova Constituição, em 1988. Chegava ao fim um período de exceção que restringiu a liberdade de imprensa, criou um aparato de informação e segurança de grande capilaridade, adotou a tortura como prática cotidiana nas prisões, levou brasileiros ao exílio, instituiu a censura, cassou mandatos políticos, legislou por atos institucionais, pôs em prática a triste medida do banimento de brasileiros, fez vigorar uma Constituição autoritária e ceifou vidas.
Lucilia de Almeida Neves Delgado é historiadora e professora dos programas de pós-graduação em história e direitos humanos da Universidade de Brasília.