A boa e a má notícia

por João Paulo 15/03/2014 00:13

Renato Weil/EM/D.A Press
(foto: Renato Weil/EM/D.A Press)
Poucas profissões se preocupam tanto com o futuro como o jornalismo. De uns anos para cá, num exercício de masoquismo e pouco amor próprio, os jornalistas passaram a disputar uma triste loteria: quem daria o furo da morte anunciada da imprensa. O que a princípio parece uma confissão de humildade frente ao novo contexto da informação (ou novo ecossistema informativo, como querem alguns teóricos), na verdade pode esconder uma atitude de capitulação política. Nunca o jornalismo foi tão necessário como instrumento de contrapoder. Talvez por isso, quem detém o poder (em todas as suas esferas) contribua com tanta eficiência para fortalecer o sentimento de obsolescência do profissional. Não é hora de entregar ouro, mas de virar a mesa.

A má notícia é que de fato mudou profundamente o cenário da comunicação. Acabaram as barreiras de entrada – hoje é relativamente barato colocar informação no ar – o antigo modelo não responde mais à temporalidade de um mundo marcado pela imediaticidade; a digitalização do mundo mudou o modelo de negócio. Além disso, a independência financeira ficou refém da audiência com suas demandas pouco construtivas em termos sociais; o profissional perdeu o respeito por seu papel social em nome da fidelidade aos interesses corporativos; o valor intelectual foi substituído pelo ativo pouco confiável da emoção. Problemas financeiros, técnicos, políticos, conceituais, profissionais e éticos. Um pacote completo de pesadelos.

A boa notícia é que, depois de uma onda de pessimismo que varreu o mundo, o jornalismo começa a recuperar seu lugar. Os sinais podem ser vistos em vários contextos. No campo econômico, o interesse de empresários como Jeff Bezos e Warren Buffet em jornais impressos é um sinal de recuperação, pelo menos, do prestígio do jornalismo no contexto dos negócios. A inclinação ao uso da tecnologia, que no primeiro momento nivelou por baixo a imprensa em nome do entretenimento, começa a dar os primeiros resultados de um novo modelo de informação que não é apenas diferente, mas pode ser melhor, mais profundo e democrático. E, ainda, é possível perceber em todo o mundo um movimento em direção à importância da informação local, o que não deixa de ser antídoto à pasteurização dos modelos globalizados e anódinos. Algumas pessoas chegam a falar de “grande pequena imprensa”.

No campo da política, a denegação da imprensa como instrumento de oxigenação social, renovação dos discursos e vigilância do poder se tornou de um valor inegociável. O alinhamento automático com os projetos geopolíticos (os segredos e mentiras de guerras e corporações) e financeiros não se sustentam mais. O fundamental é que a percepção dos limites se deu pelo trabalho da própria imprensa. O jornalismo, em suas novas plataformas e modelos, foi o maior crítico do câncer da desinformação que vinha matando a imprensa como a concebemos. Revelação de segredos e estratégias de investigação autônomas e em rede foram alguns dos novos instrumentos que permitiram trazer de volta para o coração da cena o bom e velho jornalismo.

Esse balanço vai se tornando cada vez mais complexo e exige atualização permanente. Não há mais terreno para achismos no campo da comunicação. Os profetas do caos não mais se sustentam, os arautos do infoentretenimento estão na contramão do novo papel do jornalismo, os que atrelam a informação ao jogo dos interesses perderam seu lugar de conselheiros do poder e hoje correm atrás da credibilidade perdida. Recentemente, pesquisa ecomendada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República revelou um panorama que é preocupante, mas aponta pistas que precisam ser percebidas com atenção por quem acredita no jornalismo.

O mais abrangente levantamento sobre o setor identificou hábitos dos brasileiros no que diz respeito à busca de informação. Foram mais de 18 mil entrevistados entre 12/10 e 6/11.  Os resultados foram divulgados na semana passada. Em matéria e informação, a Pesquisa Brasileira de Mídia, em primeiro lugar, constatou o esperado: 76,4% das pessoas têm o hábito de se informar pela televisão. A surpresa foi a internet, veículo de informação de 47% dos brasileiros, atrás apenas dos ouvintes de rádio, que somam 61%. Os jornais são lidos no Brasil por apenas 13% da população, enquanto as revistas não passam de 3% entre as fontes preferidas pelo cidadão. Os dados se tornam ainda mais significativos quando são confrontados com a credibilidade dos meios. Nesse campo, os jornais melhoram muito sua marca e as revistas perdem ainda mais pontos: são pouco lidas e menos acreditadas ainda. A internet surpreende mais uma vez, com uma credibilidade crescente, sobretudo entre os jovens, além de ocupar mais de três horas por dia de seus frequentadores habituais.

O que a pesquisa traz, muito mais que a repartição de importância dos meios, é a identificação de um interesse muito claro pela informação. O brasileiro não desdenha do jornalismo, mas não se sente atendido pelos velhos modelos. Em outras palavras, talvez o jornalismo esteja mudando de plataforma, e com isso, criando novas formas de consenso e credibilidade, mais ágeis e em constante mutação. O discurso moralista, que no Brasil é bem típico da linguagem dos semanários, deixou de ter abrangência e eficácia, exatamente porque não está atento ao desejo de diálogo. Quem procura informação não quer encontrar o já sabido nem regras ditadas por professores de Deus. É essa a sensação que muitas vezes passam as revistas e os sites ligados a linhas ideológicas muito estritas e inflexíveis. Quem procura essas fontes não quer entender o mundo, mas reforçar seus preconceitos.

Não deixa de ser curioso que investigação de tal porte parta do setor governamental responsável por definir verbas publicitárias que irrigam os meios de comunicação. Há mesmo uma justificativa técnica para isso, já que a tradição vinha empurrando uma política de publicidade marcada por uma realidade que não se observa mais. Se a pesquisa vai redirecionar as verbas do setor é outra história. O que chama atenção é a localização, no mesmo empenho, de duas lógicas completamente distintas: a da informação e do financiamento, ainda que por via transversas. O resultado da pesquisa pode ter, para o governo, a serventia de indicar a melhor forma de aplicar os recursos do setor, de modo a abranger o maior número possível de pessoas, desde que se tome a informação oficial como insumo para exercício da cidadania. Já para o jornalismo, a utilidade precisa ser outra. Jornalista se preocupa com notícia, quem se interessa por dinheiro é o patrão.

No caso brasileiro, não é um acaso que a concentração de mídia nas grandes cidades guarde uma significativa homologia com o desenvolvimento econômico e com a força de pressão política. Não se trata de identificar quem veio primeiro, mas de constatar que a mídia sempre esteve a reboque do poder. Por isso o novo cenário, com o crescimento do interesse pelos assuntos locais, afeta exatamente o coração de todo o sistema. A oposição ao jornalismo feito na rede, por exemplo, vem quase sempre dos setores que querem preservar o que consideram a “grande mídia”, embora a pesquisa mostre que ela é cada vez menos significativa na formação da opinião pública.

Outras vozes Mas o que tem surgido como maior novidade no campo da informação não são as provocações do negócio nem as transformações da tecnologia. O maior desafio tem sido recuperar a significação política do jornalismo, atento exatamente às novas demandas postas pelo nosso tempo. A sociedade precisa, como nunca, ordenar as informações, ter transparência acerca das ações dos governos e grupos econômicos e franquear a palavra a todos os grupos sociais. O novo jornalismo, por natureza, precisa ser mais democrático e plural. As ferramentas estão dadas e a crise do antigo modelo exige experiências inovadoras.

Há algumas em andamento no mundo que merecem reflexão. Uma delas é o Huffington Post, um site criado em 2005 que propõe um novo conjunto de forças informativas: o jornalista, o expert e os internautas. A ideia de complementaridade serve, no caso do veículo, para dinamizar as diferentes formas como a informação circula na sociedade. O avanço e funcionalidade do Huffpost, no entanto, não esconde certa tendência opinativa excessiva, em detrimento da reportagem.

Outro exemplo, este bastante conhecido, é o investimento na publicação de documentos confidenciais, na linha promovida pelo WikiLeaks. A questão, que vem até hoje alimentando os debates no meio, diz respeito ao papel do WikiLeaks no avanço da imprensa livre. O que fundamenta este modelo de informação é a certeza de que os segredos existem para ser desvendados. O que o WikiLeaks trouxe de novo, além do trabalho profissional em rede, foi a criação de novos padrões de apuração e análise, capazes de competir com a máquina de mentiras e segredos localizadas no coração do poder.

No entanto, talvez o mais avançado de todos os projetos informativos atuais seja o do semanário alemão Die Zeit. Sem o proselitismo do Huffington ou o caráter guerrilheiro do WikiLeaks, a publicação parece ter descoberto uma fórmula que conjuga qualidade da informação, autonomia editorial, independência financeira, relevância social e sucesso econômico. Com cerca de 500 mil exemplares – o que hoje é um número significativo no ecossistema da competição midiática – o Die Zeit resolveu ir contra a corrente. Em desacordo às receitas dos consultores de negócios, publica artigos longos, documentados e sem medo de enfrentar grandes temas. Além, é claro, de fugir da banalidade e do sensacionalismo. Em outras palavras: faz jornalismo. E percebeu que é o que muita gente persegue na selva de irrelevâncias que se tornou o meio digital e os jornais que deixaram de lado seu DNA para se ater a frivolidades e bajulação.

Os jornais que entenderem essa lição têm tudo para dar a volta nas contingências de nossa época. Caso a qualidade seja de vez descartada por nosso tempo, o jornalismo não vai fazer falta. Notícias ruins correm soltas. 

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