Eduardo Portella oferece reflexões lúcidas sobre as patologias político-sociais brasileiras

Em sua obra, o professor versa sore literatura, cultura, educação e ciências políticas

08/03/2014 00:13
Daniela Dacorso/AG
(foto: Daniela Dacorso/AG)
Letícia Malard


Eduardo Portella, professor de literatura entre outros títulos, é mais conhecido como o ministro da Educação (1979-1980) do governo Figueiredo, que bateu de frente com generais da ditadura e como o autor da frase “não sou ministro. Estou ministro”. Em 2012, acrescentou três volumes à sua vasta bibliografia: Dimensões IV: o livro e a perspectiva; Homem, cidade, natureza e Brasil: condições de possibilidades.

São coletâneas de textos, republicados e inéditos, selecionados entre os que escreveu em mais de meio século de militância intelectual. Vejo nesses livros, surgidos no bojo das comemorações dos 80 anos de Portella, a melhor amostragem do seu percurso e peregrinação nas principais áreas de suas atividades: literatura, cultura, educação e ciências políticas.

Dimensões IV... é uma obra de crítica literária que reúne 50 textos curtos, selecionados entre os produzidos em 51 anos de exercício na escrita sobre literatura. Ou, como o autor declara na introdução, é “um livro sobre livros. Ângulos, prismas, evidências, silêncios”. Sobre obras de escritores, na grande maioria nacionais. Aí fala principalmente o crítico de rodapé (de jornais) da década de 1960 e o professor de ciência da literatura/teoria literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esse livro dá continuidade ao Portella que assombrou os meios acadêmicos quando, aos 26 anos, publicou o Dimensões I..., na mesma linha, o qual teve segunda edição no ano seguinte, com prefácio assinado por nada menos do que Gilberto Freyre – monstro sagrado da cultura nacional. Um jovem ter livro prefaciado por ele... era a glória! E foi.

Em Homem, cidade, natureza se encontram 10 textos das décadas de 1990 e 2000, reflexivos sobre “a vida, paixão e morte da cidade” – usando a expressão do autor na nota prévia ao volume. Título e escritos são inspirados num encontro sobre o assunto, promovido no Rio de Janeiro em 1992, patrocinado pela Unesco e outras instituições. Problematizam as questões relativas às grandes cidades do século 20 – com destaque para o Rio – sob os mais variados aspectos, sobretudo os relacionados à cidadania, às questões urbanas, à ecologia e a outros fatores determinantes de vivência e convivência na vida urbana.

Aqui vamos tratar apenas de um desses livros, apresentando-o ao leitor e visando a incentivar sua leitura. Brasil: condições de possibilidades (Tempo Brasileiro) expõe com a maior clareza e qualidades de estilo o pensamento sociopolítico de Portella, em sintonia com outros importantes pensadores da vanguarda de nossa intelligenzia, independentemente de partidarismos. A propósito, em 2004, escreveu o autor:

“Certa vez, me perguntaram se me considerava de esquerda, de centro ou de direita. A minha resposta foi imediata: de esquerda não tanto quanto deveria ser; de centro também não, porque tudo que suscita neutralidade deixa de me atrair; de direita, por razões óbvias, jamais. Na realidade sou apenas um sem-lugar militante, tomado pela autodesignação de militante da esperança, intelectualmente mobilizado”.

Ora, colocando-me na escuta dos 11 textos do livro escritos/publicados pós 2004, data dessa resposta, e num total dos 21 textos, ousaria afirmar que Portella ascendeu alguns degraus à esquerda – fato que considero superpositivo – e sem perder a esperança nem a mobilização anteriores. Nessas páginas não se leem retrocessos nem revisionismo nem meias palavras. São artigos publicados em periódicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, discursos como membro da Academia Brasileira de Letras e papers lidos em eventos de Paris, pois o ex-ministro também é detentor de cargos na Unesco.

Pode-se dizer que os textos de Brasil: condições de possibilidades giram em torno de dois grandes temas, que tento resumir. O primeiro tema – eixão do qual derivam subtemas – são as patologias da nossa democracia, em especial a educação sem ter prioridade, a inflação e a corrupção. A esse trio subjaz a deflação dos valores éticos, que solapa qualquer projeto democrático e responsável nos diferentes níveis dos poderes constitucionais. A política sem ética, sobretudo aquela de vésperas de eleições, desenha-se num ringue de luta-livre: “terra de ninguém”, “vale-tudo”, caratê eleitoral”. A campanha dos candidatos na mídia se apresenta como um carnaval extemporâneo, é difícil escolher nossa fantasia para o cômico baile de máscaras.

E mais: os patamares de marginalização dos eleitores são chocantes. A sucessão de escândalos deixa-os desamparados, contrainformados e reféns de uma reforma política em eterno adiamento. Aqui, o fenômeno Tiririca vem a calhar: é um equívoco achar que a votação que lhe foi dada reflete apenas o baixo nível do eleitorado, afirma Portella. “Ele é também um protesto contra a palhaçada fora de lugar. Aquela que se instala nas instituições”, escreve.

Baixa modernidade

O segundo tema do livro é a desigualdade social, lado deficitário de nossa “baixa modernidade”, conforme Portella prefere chamar os tempos contemporâneos. Desigualdade como consequência da má distribuição de renda e, acrescenta o autor, do poder político. O Brasil está transitando da sociedade do trabalho para a sociedade aética do espetáculo, e desta para a antiética do escândalo. E se torna prisioneiro das duas últimas, como se elas fossem ícones da modernidade. Então, indaga Portella: “Para que serve a modernidade se não reforça a democracia?”.

Ele enxerga a educação como o grande salto para a solução do maior problema da nação, ou seja, a inclusão social, através do que chama de “pedagogia da qualidade”, quando já começamos a importar mão de obra qualificada. Saudando o economista Celso Furtado em sua posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1997, Portella articula educação e cultura ao declarar: “Educar consiste em formar o cidadão. O cidadão inclui o profissional e o ultrapassa”. Acrescenta que a cultura enquanto fortalecimento da educação é uma exigência do próprio desenvolvimento. Aqui, pergunto: em 17 anos foi feito algo nesse sentido?. Creio que absolutamente nada.

Ao tratar das nossas patologias político-sociais e da desigualdade de renda, sobre as quais tanto se tem falado e outro tanto se tem escrito, Portella o faz com grande marca diferenciadora: além das ideias lúcidas e antiesquizofrênicas, ele carrega para o texto não ficcional uma linguagem comparativa e metafórica, de condensações e deslocamentos. Alia o bom senso ao bom gosto. Tais recursos retóricos – como se pode perceber nas citações anteriores – imprimem a seu texto um padrão distante do texto jornalístico ou “científico”, e é muitas vezes temperado com ironia e humor. Esse padrão não é o da literatura – uma vez que Portella não está escrevendo sobre “imaginaridades” – nem o dos discursos informativos e similares – pois estes primam, no geral, pela ausência de recursos retóricos. Assim, trabalhando o que ele propõe dizer utilizando formas discursivas inusitadas, capta o leitor numa teia de reflexões sobre o que é dito e, simultaneamente, como é dito.

Assim, se os nossos governantes, completamente perdidos hoje numa selva escura, lessem Eduardo Portella, certamente se enriqueceriam com mais e melhores ideias sobre o que fazer no Brasil e com o Brasil atual.

. Letícia Malard é professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais.

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