Magda Lenard, uma atriz

Dramaturgo relembra os primeiros passos da jornalista nas artes cênicas. Estreia no monólogo A voz humana, em 1956, ajudou a fortalecer grupo interessado em renovar os palcos em BH

por 01/03/2014 00:13
Arquivo EM
(foto: Arquivo EM)
Jota Dangelo

Fui surpreendido, na semana passada, com a notícia do falecimento de Magda Lenard. E, surpreendido, entre uma estranha sensação de perda e uma inexplicável vontade de desabafar sem saber exatamente o quê, ou por quê, mergulhei em recordações viajando mentalmente para épocas passadas, mais precisamente para a década de 50 do século 20. Naqueles tempos, nós, a geração que se envolvia com o teatro, com a dança, com o jornalismo, com a poesia, com a literatura, estávamos juntos, emprenhados de entusiasmo e empenhados em criar condições para que o ato criador pudesse ganhar corpo em realizações que nos gratificassem e conquistassem o público belo-horizontino. Não era uma luta fácil, mas pelo menos estávamos unidos, tínhamos ponto de encontro, juventude, destemor, otimismo, confiança e o apoio de muitos amigos que circulavam pelas áreas culturais da cidade.

Magda Lenard ainda era Maria Carmem Machado e eu a conheci em 1956, apresentado a ela por Carlos Kroeber, que com João Marschner, Firmino de Almeida e eu mesmo estávamos dispostos a criar um grupo teatral amador, o Teatro Experimental, empenhado em encenar textos nada comerciais, e menos ainda comediazinhas digestivas ou maliciosas que volta e meia ocupavam o Teatro Francisco Nunes em montagens de companhias do Rio, como Eva Tudor e Dercy Gonçalves, além de revistas musicais como as do comediante Colé. Nossa juventude respondia por este ímpeto juvenil de encenar grandes nomes da dramaturgia universal, dando pouca importância à necessidade obrigatória de estarmos qualificados para a tarefa criadora.

Desde dezembro de 55, estávamos conversando diariamente sobre a possibilidade de lançar o Teatro Experimental com a encenação de um texto de Jean Cocteau, o monólogo A voz humana. Procurávamos quem pudesse traduzir o texto e a atriz que interpretasse o personagem. Para a tradução convidamos Laís Corrêa de Araújo, que aceitou prazerosamente. Em maio de 56, Luiz Gonzaga, pioneiro diretor teatral mineiro, com os seus Comediantes Mineiros ocupou o Francisco Nunes para encenar numa curtíssima temporada Irene, de Pedro Bloch, e A dama da madrugada, de Alejandro Casona. O elenco numeroso contava com boa parte dos atores e atrizes da TV Itacolomi, como Dora Serpa, Lenice de Almeida, Ubaldino Guimarães, Nilda Almeida e Otávio Cardoso, além de gente de teatro como Edel Mascarenhas, Coracy Raposos e Francisco Goulart.

Amélia Carmem também estava no elenco e chamou a atenção de Carlos Kroeber. Feito o convite, foi aceito e os ensaios de A voz humana estenderam-se pelos meses de maio e junho. O espetáculo estreou em 23 de junho de 1956 no auditório (seria absurdo chamá-lo de teatro naquele tempo) do Isabela Hendrix, onde fez apenas três apresentações, prestigiadas por um público sofisticado de classe média e alta. Foi a primeira encenação do Teatro Experimental, que àquela altura não tinha organização nem personalidade jurídica, o que só ocorreria em 1959.

O advogado e jornalista Carlos Denis, muito ligado à turma do Teatro Experimental, deu ampla cobertura ao evento em reportagem no Estado de Minas publicada em 1º de julho. No texto, o jornalista primeiramente traça um panorama pouco otimista do teatro em Belo Horizonte, ressalvando as encenações de João Ceschiatti com o seu Teatro Operário do Sesi. Em seguida, cita as presenças ilustres na plateia, como o arquiteto Sylvio de Vasconcellos, a escritora Lúcia Machado de Almeida, o professor Jean Bercy, o pintor Mário Silésio, o crítico de cinema Jacques do Prado Brandão, o poeta Afonso Ávila, o romancista Rui Mourão, o cronista Fritz Teixeira de Sales e a escritora Laís Corrêa de Araújo, tradutora da peça.

E prossegue: “Em linhas gerais, podemos dizer que o espetáculo agradou, apesar de alguns senões, perfeitamente toleráveis, em se tratando de uma primeira apresentação feita exclusivamente por amadores”. E, logo depois, passa a comentar a interpretação da atriz, estranhando o pseudônimo usado por ela. Amélia Carmem já fazia parte do elenco da TV Itacolomi e, provavelmente, devia ter adotado o nome artístico quando ingressou na TV, o que talvez tivesse escapado a Carlos Denis: “A interpretação de A voz humana esteve a cargo da jornalista Amélia Carmem Machado, que, não sabemos por que, apareceu no programa com o esquisito pseudônimo de Magda Lenard, evidentemente nome mais para uma cantora de tangos. Antes de tudo, devemos reconhecer seu esforço, altamente meritório, em procurar dominar o papel e de cumprir sua missão de modo bastante razoável. Talvez, com um pouco de emoção e querendo captar a plateia desde logo, ela já começou dando à personagem um certo calor, que de fato a mesma possui, mas não em todo o desenrolar da peça. De resto, devemos mencionar que os aplausos que o público, de pé, lhe tributou ao final do espetáculo foram mais que merecidos”.

Temperamento forte
Magda Lenard era uma atriz de forte personalidade e nada fácil de ser dirigida: temperamental, questionadora, mas indiscutivelmente um talento na arte da interpretação teatral, não aceitava passivamente quaisquer orientações se com elas não estivesse plenamente de acordo. Na segunda vez em que trabalhou com o Teatro Experimental, em agosto de 1957, tive que enfrentar diretamente o desafio de dirigi-la. Decidimos encenar o poema de Rainer Maria Rilke Canção de amor e morte do porta-estandarte Cristovão Rilke numa reunião solene das Amigas da Cultura, que ocorreria no salão do Automóvel Clube. Era uma homenagem que faríamos à entidade presidida por Anita Uxa, fundamental no apoio a diversos segmentos artísticos e culturais da capital mineira. A direção era de Carlos Kroeber, mas eu era seu assistente e, não raras vezes, tive que assumir a direção de Magda Lenard nas ausências de Kroeber. Um desafio gratificante. Embora instintiva, até um pouco arrogante, Magda Lenard era brilhante nos ensaios e também nas discussões que tivemos durante todo o período de ensaios.

No fim de 1957, quando o Teatro Universitário da UFMG já estava consolidado institucionalmente e Giustino Marzano, seu diretor artístico, preparava-se para dirigir Crime na catedral, de Eliot, insistimos com Marzano para que Magda Lenard fosse convidada para fazer parte do elenco que compunha o coro de mulheres de Cantuária. E assim foi feito. A partir de 1958, a atriz dividiu suas atividades entre a TV Itacolomi e o jornalismo no Jornal de Minas, no Estado de Minas e no Diário da Tarde.

Foi uma das fundadoras da Associação Mineira de Críticos de Teatro (AMCT, de saudosa memória). Transferiu-se posteriormente para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na sucursal carioca do Correio Braziliense e era titular de um programa de uma rádio virtual, a Redervc.com., denominado Conversa com Magda. Afastou-se, pouco a pouco, das artes cênicas e mesmo de Belo Horizonte. Mas quem a viu, como atriz, na TV Itacolomi ou nos palcos da cidade, sabe que as artes cênicas tiveram, com ela, alguns dos seus momentos de maior brilhantismo e competência.

Jota Dangelo é dramaturgo, diretor e ator.

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