Luz e sombra

Livros do historiador Jacques Le Goff trazem informações sobre personagens do período que vai do fim da Antiguidade ao Renascimento. Estudo analisa relação da Idade Média com o dinheiro

por 01/03/2014 00:13
Edições Flammarion/Reprodução
(foto: Edições Flammarion/Reprodução)
João Paulo

Já não se sustenta mais a imagem da Idade Média com um longo período de mais de mil anos, que vai da Antiguidade ao Renascimento. Se há um historiador que ajudou a dar a real dimensão do período como um dos momentos mais ricos da história humana, inclusive com aspectos progressistas e renovadores, é o francês Jacques Le Goff. Autor de dezenas de ensaios e obras de referência, como A civilização do Ocidente medieval e Dicionário temático do Ocidente medieval, entre outras, ele tem dois novos volumes lançados no Brasil: Homens e mulheres da Idade Média (Estação Liberdade) e A Idade Média e o dinheiro (Editora Civilização Brasileira). São obras diferentes em abrangência e estilo, mas que contribuem para a elucidação de aspectos decisivos do período.

Homens e mulheres da Idade Média é na verdade obra coletiva, composta sob a coordenação de Le Goff, que reúne 112 perfis de personagens reais notórios de vários campos (da política à filosofia, da arte à teologia) e alguns imaginários, que funciona como espécie de dramatis personae do rico painel humano da época. Em bela edição de capa dura, com iconografia que ajuda a dar a feição e o ambiente de cada personagem – não se trata apenas de ilustração, mas de informação visual selecionada com critério – a obra é organizada seguindo a cronologia, indo do século 4 ao 16, com direito a um capítulo dedicado aos personagens fictícios que ganharam vida no imaginário popular e literário.

Na expressão do organizador, trata-se de recuperar a vida e a obra dos “lentos criadores da Europa”. A escolha do método, que privilegia os personagens em vez dos grandes feitos e guerras, é herança da escola dos Annales, grupo de historiadores franceses que buscou sempre se aprofundar na grande história a partir de uma certa estrutura de sentimento. Em outras palavras, as pessoas com sua vida expressam a vida social, são emblemas, estandartes pelos quais é possível se divisar toda a sociedade.

O título do livro coloca lado a lado homens e mulheres, mas é nítida a maior presença da figura masculina. No entanto, isso não deve esconder a importância que a mulher exerce no período. Para isso, é só acompanhar as biografias que integram o compêndio, com destaque para o novo papel da mulher, que, ainda que não avance em relação à Antiguidade, não deixa de manifestar-se em outro registro. No período, pela forte influência do cristianismo, as mulheres estão afastadas da função sacerdotal, mas desfrutam de um estado superior, o da santidade, tendo como modelo o culto de Maria, sobretudo a partir do século 12. Se na religião a mulher se mede pela santidade, na vida cortesã dá início à categoria da dama, que dispõe de certa autoridade sobre o homem, que é seu vassalo.

No caso dos homens, além da figura do santo, são destacados os reis, que deixam de significar a figura dos tiranos da Antiguidade para ressurgir sagrados pela religião. Além deles, dois tipos de personagens masculinos são destacados entre os maiores do medievo, os papas e os teólogos. São pensadores e atores políticos e religiosos que alimentam a vida intelectual da Idade Média, com grande autoridade, ajudando a compor o triângulo de influência do período: a Igreja, a realeza e a universidade. São novos poderes que se firmam durante o período, que elegem seus representantes de maior destaque.

Por fim, Homens e mulheres da Idade Média abre espaço para personagens – talvez ainda hoje os mais conhecidos – que não existiram de fato. São os que ajudaram a divulgar o imaginário, as tendências morais e heroicas do período, se tornando quase paradigmas de determinadas ações e sentimentos humanos, como Robin Hood, rei Arthur, mago Merlin, Virgem Maria, Melusina, papisa Joana e Satã.

Le Goff organizou o livro por períodos. O primeiro abrange o fim da Antiguidade e vai até a Alta Idade Média, ou, em termos políticos, da cristianização do imperador Constantino até Carlos Magno. São cerca de cinco séculos, entre 325 e 814, que viram florescer personagens como Santo Agostinho, São Bento de Núrsia, Boécio, Gregório I, o Grande e Carlos Magno, todos biografados no livro.

O segundo período vai de Carlos Magno ao ano mil (814-1000) e marca o momento em que se firma o território da cristandade ou, mais especificamente, do que chamamos de Europa. Neste momento, o poder se divide entre o rei e o papa, o que explica os nomes que integram a seção: Alfredo, o Grande, Oto, o Grande, Santo Adalberto, Santo Estevão e São Venceslau.

O terceiro capítulo, que marca o apogeu medieval (1000-1300), é o mais rico em termos culturais e filosóficos, e tem como nomes de destaque Abelardo e Heloísa, São Bernardo de Claraval, Hildegarda de Bingen, São Francisco de Assis e Santa Clara, Tomás de Aquino, Raimundo Lúlio, Afonso X, o Sábio, Johannes Eckhart, Ricardo Coração de Leão, Averróis, Saladino, Marco Pólo e Dante Alighieri.

A quarta seção, que fecha a cronologia medieval de Le Goff, intitulada por ele de “Perturbações e mutações”, engloba os séculos 14 e 15, vai além da consideração habitual do período, tido como de crise, para também destacar os aspectos criativos da transição. Entre as histórias de vida que fazem parte do capítulo estão as de Guilherme de Ockham, Boccaccio, Chaucer e Santa Catarina de Siena. Como se trata de momento de passagem, é exemplar que as biografias que encerram o livro apontem para dois rumos contrários: um personagem simbolizando a crise, Vlad, o empalador (que se tornou Drácula) e outro que abre horizontes que vão dar na modernidade, Cristóvão Colombo.

Por fim, é importante destacar a forma como cada verbete/biografia é estruturado. Como se trata sempre de personagem que carrega grande volume de estudo, os colaboradores de Le Goff foram orientados a produzir textos enxutos, que nunca ultrapassam cinco páginas, sem se perder em polêmicas ou defender teses. São trabalhos enciclopédicos, legíveis, que ajudam a localizar o personagem no quadro histórico e intelectual mais amplo, sem fugir ao comentário pessoal, quando necessário, nem à comparação com o nosso tempo, quando ajuda a entender os dois lados do arco do tempo: o passado e o presente.

Um exemplo desse método é o verbete dedicado à mais amada e detestada das rainhas medievais, Leonor de Aquitânia (1124-1204): “Alguns louvaram sua beleza, sua piedade ou seu mecenato; outros a trataram de ninfomaníaca e acusaram-na de incesto. Ainda no século 20, os medievalistas sérios a rotulam de ‘verdadeira piranha, preocupada unicamente com o poder e o sexo’, ‘loba ávida de poder’, ou até mesmo ‘uma das mulheres mais cruéis e desconsideradas que a história nos tenha deixado lembrança’ etc. O florilégio de citações pouco amáveis poderia ser estendido. Partindo da constatação de que os homens detestam mulheres de poder, esses insultos tardios provam ao menos que Leonor soube dar provas de autoridade e intervir nas lutas de seu tempo”.

E há quem diga que a Idade Média ficou no passado.

MAIS SOBRE PENSAR