Poeta Fabrício Carpinejar lança suas memórias da infância em dois volumes de crônicas

Série autobiográfica ganhará mais quatro livros

por Ângela Faria 15/02/2014 00:13
Camila Rodrigues/Divulgação
O performático Carpinejar brilha no texto e no contato direto com o público, com seu senso de humor singular (foto: Camila Rodrigues/Divulgação)
‘‘Viver exigia legendar o mundo”, escreve o mineiro Bartolomeu Campos de Queirós em sua obra-prima, o romance Vermelho amargo, narrado por um garoto às voltas com os mistérios da infância. “Nascer é muito comprido”, decreta Murilo Mendes no poema “Reflexão nº 1”. Agora, Fabrício Carpinejar, de 41 anos, reinventa seus dias de menino para nos ajudar a saltar o abismo do tempo.

Em dois pequenos livros de crônicas – Não atravesso a rua sozinho e Te pego na saída –, o gaúcho revisita sua meninice no interior do Rio Grande do Sul. Tempos saudáveis, aqueles: nada de grades e portões eletrônicos, bastava bater palmas para alguém abrir a porta de casa. Diversão não era sinônimo de shopping center e muito menos de rolezinho. A rua era o mundo – de todos.

Carpinejar diz que sua biografia é rascunho para um romance. Será? De crônica em crônica (são 50, em 197 páginas), temos a impressão de já ler o romance protagonizado pelo gauchinho alto-astral que se sentia “um menino iraniano no Brasil” – de tão diferente dos outros. Feinho, o pequeno herói acreditava ter sido trocado no hospital. Não adiantou a mãe exibir a foto do avô, um o focinho do outro. “Coitado, ele também foi trocado”, conclui.

Também pudera! Depois de operar as adenoides, Fabrício teve de chupar bico até os 10 anos. Era assim o tratamento da fonoaudióloga para expandir o céu da boca do pequeno paciente, obrigado a conviver com o desvio de septo e muitos exames. Brindado com implacáveis apelidos pela gurizada, nosso protagonista fez do bom humor um cúmplice – sem dramas, ao que parece. “Não me sentia humilhado. Me antecipava às piadas sobre minha feiura e elas ficavam velhas na boca dos outros”, confessa.

O personagem de Não atravesso a rua sozinho lembra um pequeno mineiro: o alto-astral Odnanref de O menino no espelho (1982), romance de Fernando Sabino. O gaúcho e o belo-horizontino souberam legendar o mundo, como disse Bartolomeu Queirós. Crianças atentas ao imenso universo à sua volta, vasculharam infinitezas que cabem dentro do quintal, de uma sala de aula ou do lar, doce lar. “Eu apenas me interessava por fatos que ninguém conseguia explicar. A desistência da explicação é o início do poema”, resume Carpinejar. Simples assim.

Se Fernando – digo, Odnanref – voou pelos céus de Belo Horizonte, salvou uma galinha e fez dela sua fiel “Sancho Pança” –, nosso pequeno “iraniano” também tem suas histórias com poedeiras. Pois não é que mandaram a penosa de estimação do avô para a mesa no almoço de Domingo de Ramos? “Marlene, Marlene, perdoa, eles não sabem o que fazem!”, bradou o nonno. Ecologista, a dupla. Quando o patriarca decidiu fotografar seus bichos queridos – vaca, cavalo e a outra penosa, a Lurdes –, coube ao neto segurar os modelos, além de maquiar Lurdes. Na parede da sala, a Arca de Noé: em 22 pequenos três por quatro. Com um nonno assim, para que amigos imaginários?

Picolé No mundo fabriciano, eletrodoméstico é quase ser humano. Aberta, a geladeira funcionava como luminária e ar-condicionado para o voraz leitorzinho noturno. Certa vez, o menino esqueceu livros lá dentro. Eram de Gonçalves Dias – as obras completas, coitadas, encolheram, vítima de hipotermia. Veterana nas lides domésticas, a máquina de lavar da mãe, comprada em 1974, não parece: é quase uma tia solteirona: “Com seu uniforme de enfermeira, os cabelos grisalhos, a cintura de bisavó e o perfume azul de sabão em pó”. Homem feito, Carpinejar confessa: leva a trouxa de roupa suja para a casa da mãe quando bate a neura de abandonar a literatura. E fica ali, observando a velha senhora tossir, resmungar, roncar e suportar estoicamente as empregadas, quase assassinas, girarem seu botão no sentido anti-horário.

Ser criança nunca foi fácil – que o digam Bartolomeu Queirós, Murilo Mendes, Fernando Sabino, Fabrício Carpinejar e os meninos de hoje, às voltas com o bulliyng. Há algo comum entre eles: todo mundo quer ser invisível quando pequeno, arranja briga na escola e teme atravessar a rua sozinho.

Como tantas crianças no século 21 (entupidas de ritalina, a droga das salas de aula), Fabrício Carpinejar não se dava bem com as letras. O ditado o aterrorizava. Ele ouviu a professora avisar: “O menino não tem conserto. Não vai se alfabetizar”. A mãe reagiu, “braba de esperança”: arrumou um quebra-cabeças com sílabas, subiu ao telhado – refúgio de seu menino – e, pacientemente, inventou palavras com ele. Foi assim que o futuro escritor se apaixonou pelo ofício. E ele ainda garante: “Escrevia mais no tempo em que era analfabeto...”.

COLEÇÃO VIDA EM PEDAÇOS
De Fabrício Carpinejar
Ilustrações: Eloar Guazzelli

. NÃO ATRAVESSO A RUA SOZINHO
Editora Edelbra,
112 páginas, R$ 25

. TE PEGO NA SAÍDA
Editora Edelbra,
96 páginas, R$ 25


. Estão previstos mais quatro volumes da autobiografia do escritor, em que ele abordará o relacionamento com os filhos, Mariana, de 20 anos, e Vicente, de 11.

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