Coletânea de estudos incorpora autores ao grupo de intérpretes clássicos da formação nacional

Material é organizado pelos historiadores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco

por 08/02/2014 00:13
Kathia Tamanaha/AE
(foto: Kathia Tamanaha/AE)
Carlos Guilherme Mota

Em Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados (Boitempo Editorial), organizada pelos historiadores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco, reúnem-se estudos e ensaios sobre alguns dos principais intérpretes da história e da cultura no Brasil, escritos por reconhecidos especialistas, em geral professores de universidades como USP, Unicamp, Unesp e UFRJ, ao lado de estudiosos como o argentino Guillermo Almeyra, da Universidade de Buenos Aires e da Clacso, e o mexicano Carlos Mallorquín (o prinicipal estudioso da obra de Celso Furtado fora do Brasil, segundo o próprio Furtado), atualmente professor na Universidade de Zacatecas. E ainda outros críticos conhecidos no meio acadêmico brasileiro, como Ricardo Bielschowsky, Marcelo Ridenti e Marcos Del Roio.

O leitor poderá notar que, tanto na seleção dos autores como dos comentaristas críticos, os organizadores desta obra fugiram bastante das linhas de publicações que vêm se dedicando ao estudo dos “explicadores” do país. Nada obstante, eles consideram relevante, é claro, a contribuição decisiva de vários escritores e pensadores anteriores, já clássicos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Antonio Candido, autores de obras seminais, aqui revisitados em abordagens inovadoras.

A novidade da publicação é que os coordenadores trouxeram para o debate de ideias sobre o Brasil figuras que estavam um tanto à sombra, como, a despeito de seu papel histórico, o venerando Astrojildo Pereira, mas também do crítico da conciliação José Honório Rodrigues (neste ano do centenário de seu nascimento), Heitor Ferreira Lima, Octavio Brandão, Luís da Câmara Cascudo, Leôncio Basbaum, os inquietos Mário Pedrosa e Darcy Ribeiro, além de Everardo Dias, Rômulo Almeida, Nelson Werneck Sodré, Rui Facó. E, dos mais “novos” e menos compendiados, os heterodoxos e brilhantes Maurício Tragtenberg (“no Brasil não há cidadãos, mas súditos-contribuintes”, ironizava), Jacob Gorender, Rui Mauro Marini e Milton Santos (“não se deve confundir a moda com o modo”, alertava), o laborioso Edgard Carone, e ainda personalidades da importância histórica de Paulo Freire e Ignácio Rangel.

Verifica-se nesta obra uma significativa ampliação do foco nos estudos sobre o pensamento brasileiro, não apenas em termos geracionais como também na variedade de visões teóricas e abordagens pronunciadamente ideológicas. Câmara Cascudo e Werneck Sodré não estão, positivamente, na mesma chave ideológico-cultural, assim como Rômulo Almeida e Maurício Tragtenberg produziram ensaios em diferentes quadrantes.

Sabe-se que cada geração analisa e “redescobre” o Brasil e interpreta o processo de nossa formação dentro das condições e debates de suas épocas. Poucos vão além. É necessário lembrar, entretanto, que já assistimos desde o século 19 a diversas tentativas de interpretação de nossos caminhos enquanto sociedade e cultura, considerando inclusive as conjunturas político-ideológicas específicas em que surgiram. Claro que anacronismos sempre existiram, mas as dificuldades em “pensar o pensamento”, como alertara Machado de Assis, estiveram presentes em todas as tentativas, até hoje. E que Mário de Andrade sempre se inquietou com a dificuldade em saber o que somos e valemos enquanto povo…

Mais recentemente, vale recordar algumas tentativas importantes, como a de Dante Moreira Leite, autor do Caráter nacional brasileiro. Tese muito polêmica, apresentada à antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em 1954, quase lhe custou uma reprovação, por tratar de modo menos convencional características do “brasileiro” por meio de ideologias e estereótipos. Valorizando historiadores como Caio Prado Júnior e João Cruz Costa, suas observações sobre as abordagens de Sérgio Buarque e Gilberto Freyre sobre nossa formação não agradaram de todo a banca examinadora… Na nova edição revista e ampliada da tese de Dante, com o subtítulo de História de uma ideologia, Alfredo Bosi expõe em 1983 o significado da obra e mapeia as linhas gerais da produção intelectual do país, do mesmo modo que o fez no longo prefácio crítico e generoso ao nosso livro Ideologia da cultura brasileira (1977), brotado na mesma vertente de Caráter nacional brasileiro, embora com crítica à sua visão por assim dizer liberal.

À época da publicação do livro de Dante, o cearense Djacir Menezes publicava O Brasil no pensamento brasileiro (1957 e, revisto,1972, pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais), com seleção de trechos de obras de vários intérpretes significativos, com exclusão porém de importantes intelectuais de esquerda. Desse mesmo momento, é a obra fundamental de João Cruz Costa Contribuição à história das ideias no Brasil (primeira edição 1957 e 2ª edição em 1967), que aguarda melhor e mais justa avaliação.

Em 1966, eis que vem à luz o livro de Fábio Lucas Intérpretes da vida social, conjunto de estudos e ensaios bem escritos, com observações agudas sobre a imagem do Brasil, a América Latina e nós, o culto do herói, e sobre o padre Antônio Vieira, Euclides da Cunha, Rui Barbosa e o mineiríssimo Afrânio de Melo Franco.

Nos anos 1960 e 70, abriram-se muitas novas veredas na história e crítica da produção político-cultural entre nós, tanto no campo da historiografia como nos da crítica literária e da sociologia da cultura e, de modo geral, na área das ciências humanas. A temática da “formação”, das “raízes” e da liquidação da “herança colonial” (incompleta até hoje) passava a estar presente nas melhores tentativas de explicação do Brasil, no embalo, primeiro, das obras clássicas de Freyre, Buarque e Caio Prado Júnior, e depois da viragem dos anos 50 para 60, no clima respirado e crítico criado com os livros referenciais de “formação” de Antonio Candido, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Wanderley Guilherme e outros. Tempos de descolonização, de descoberta do subdesenvolvimento e do terceiro-mundismo, de abertura mental, de reforma e revolução e… de repressão sistemática, sobretudo após o golpe de 1964.

Ciências sociais


O impacto dos novos métodos e técnicas das ciências sociais, da crítica literária e da historiografia pode ser apreciado nas obras de um Florestan Fernandes, em que o formulador de ideias e teses sobre nossa história começa a se preocupar crescentemente em esclarecer a localização de sua própria metodologia e perspectiva histórico-historiográfica. Preocupado com o sentido de nossa história, trafega ele pela ampla e densa bibliografia dos intérpretes que o antecederam, como se pode constatar em seu livro esclarecedor A condição do sociólogo (1977), obra prefaciada por Antonio Candido, em que situa seu grupo-geração e sua visão de história. Na mesma perspectiva, em Florestan Fernandes, Sociologia crítica e militante, coleção de textos do sociólogo-historiador paulistano organizada por Octavio Ianni, publicada em 2004, tem-se um marco do moderno pensamento de esquerda (no e) sobre o Brasil. A apresentação de Ianni, “Florestan Fernandes e a formação da sociologia brasileira”, sinaliza com precisão os novos tempos do pensamento sobre as ambiguidades e desafios enfrentados ao longo de nosso percurso histórico enquanto povo-nação. Uma vanguarda neste país da “miséria farta” (Anísio Teixeira).

Registre-se a atenção de Florestan para com a divulgação dos clássicos, nacionais e estrangeiros, como se constata na Coleção Grandes Cientistas Sociais, editada pela Editora Ática, publicando autores como Nabuco, Furtado, Bastide, Caio Prado, Euclides, Sérgio Buarque, ele próprio; e dentre os estrangeiros, Mannheim, Febvre, Marx, Weber, Adorno, Benjamin, Bourdieu, Habermas… Um marco editorial sem precedentes.

Finalmente, diga-se que por volta do ano 2000 surgiram muitos projetos para repensar nossa história. Nesse clima de reencontro do Brasil com sua história publicou-se Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (dois volumes), obra coordenada por Lourenço Dantas Mota, trazendo substanciosos estudos de vários especialistas sobre os principais “intérpretes”, desde Vieira, Antonil e José Bonifácio a Euclides, Manoel Bonfim, Vitor Nunes Leal, Faoro, José Honório, Darcy e Antonio Candido, além de Furtado e Florestan. A Folha de S. Paulo, em projeto com a Editora Nova Fronteira, levou às bancas de jornal alguns desses clássicos, a preço baixo. A Comissão para as Comemorações dos Quinhentos anos do Descobrimento também publicou, com a Editora Aguilar, três volumes com vários desses estudiosos sobre nossa formação.

Mais recente é o conjunto de ensaios de Fernando Henrique Cardoso Pensadores que inventaram o Brasil (2013), obra modulada pelo diapasão de Joaquim Nabuco. Tais ensaios permitem, mais do que os autores escolhidos, compreender a própria visão de país e cultura do ex-presidente.

Muito haveria a acrescentar neste breve balanço, visto que a produção só fez aumentar nas últimas duas décadas, nessa seara. É o caso, por exemplo, da pequena e estimulante obra de Sérgio Buarque de Holanda A contribuição italiana para a formação do Brasil (Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2002, edição bilíngue, organização e tradução de Andréia Guerini). Também em italiano, registre-se a edição crítica organizada por Nello Avella da obra de Paulo Prado Retrato do Brasil (Bulzoni Editore, 1995, con un saggio di Carlos Guilherme Mota), e assim por diante.

Enfim, esta nova obra vem ampliar de modo crítico os horizontes e o debate histórico-historiográfico nesta quadra difícil de nossa história, tão marcada por ambiguidades, desacertos e, já agora, também por profundas revisões para uma retomada rumo a um futuro melhor.

Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados
. Organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco
. Boitempo Editorial, 416 páginas, R$ 68

. Carlos Guilherme Mota é historiador, autor de Ideologia da cultura brasileira (1933-1974), entre outros livros.

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