Em 'Ex Isto' cineasta Cao Guimarães envereda pelos trópicos selvagens e contemporâneos

Filme é baseado em romance do poeta curitibano Paulo Leminski

por 08/02/2014 00:13
Indie/Divulgação
Indie/Divulgação (foto: Indie/Divulgação)
Leca Kangussu

Por uma feliz coincidência, na mesma época em que o festival de cinema do Urso de Ouro de Berlim anunciou a seleção do filme O homem da multidão, do cineasta mineiro Cao Guimarães, para ser exibido na edição de 2014, pudemos assistir em Belo Horizonte, na Mostra Iconoclássicos, realizada na primeira semana deste mês, a outro fabuloso filme do mesmo cineasta, Ex Isto, livremente inspirado no livro Catatau, de Paulo Leminski. Neste romance experimental, lançado em 1975 e republicado em 1989, o poeta parte da seguinte pergunta hipotética: “E se René Descartes tivesse vindo ao Brasil com Mauricio de Nassau?”.

Sobre a própria obra, que leva adiante a renovação da linguagem realizada por James Joyce e Guimarães Rosa, o escritor polonês curitibano afirmou: “Eu mesmo não consigo lê-lo de uma assentada, porque lá pela página 60 estou desvairado e com a lógica em farrapos”. Catatau, ainda nas palavras de Leminski, “é uma obra feita com carinho” e, ao mesmo tempo que pode ser considerado como um termo relativo a livros longos (segundo o autor “o calhamaço catatau é sinônimo de monstro na Bahia”), catatau pode também ser considerado como um carinhoso apelido brasileiro para Cartesius, versão latina do nome do filósofo.

Encontrei as citações que fiz de Leminski na coletânea póstuma de seus poemas, organizada por Alice Ruiz e Áurea Leminski, O ex-estranho, cujo título ressoa no do filme Ex Isto – estranha apropriação do famoso cogito, “penso, logo existo”. A apresentação visual, tão clara e distinta, do filósofo matemático, vista no filme, parece ressoar ainda o curso de filosofia moderna do notável professor José Henrique Santos, que o cineasta acompanhou no século passado, na Fafich.

Conforme o catálogo (sem autoria declarada) generosamente distribuído na mostra do Cine Sesc Palladium, Descartes, no filme, “envereda pelos trópicos, selvagens e contemporâneos [...] investigando questões da geometria e da ótica diante de um mundo absolutamente estranho”. Estranhamento é uma palavra adequada para descrever a fictícia relação do personagem com o Brasil. Na primeira tomada, vemos o filósofo, interpretado por João Miguel, sozinho em uma canoa em plena floresta amazônica. A semelhança do ator com o retrato do jovem Descartes, que pode ser visto no museu de Toulouse, realizado por um pintor anônimo, fica ainda mais potencializada pelo figurino perfeitamente fiel aos trajes do Descartes maduro retratado por grandes mestres, Frans Hal entre eles.

A certeza de que quem navega na canoa é um europeu bem vestido do século 17 impõe-se sensivelmente. A frágil embarcação desliza através da massa verde, imponente, viva, com seu solitário ocupante vestido de preto, chapéu emplumado da mesma cor, golas e punhos de delicados drapeados brancos, criando um contraste que acentua a distinção entre a natureza e o homem assim chamado “civilizado”. O diálogo entre ambos, visualmente configurado como impossível, é lindo de se ver. Tanto quando a canoa aparece de comprido, com a imensidão da floresta atrás, como um enigmático pano de fundo; como quando a canoa aparece de frente, refletida nas águas cuja luminosidade prolonga-se na do céu, emoldurada dos dois lados pelos mistérios da floresta compacta.

Filósofo na selva

Formalmente, as imagens de abertura do filme Ex Isto remetem aos maravilhosos pintores paisagistas do século 17 e 18 (Lorrain e Poussin, entre os franceses) e, se não na forma, certamente no sentimento, às paisagens de solidão pintadas pelos românticos, às de Caspar David Friedrich em particular, que mereceram o comentário de Rilke: “Graças a estes solitários, toda a humanidade pode aproximar-se da natureza”. O filme coloca-nos no coração da floresta e, através da figura engalanada do filósofo, com o olhar já distante do ser humano “civilizado”, onde medo e fascínio são a mesma coisa.

Descartes vai também às cidades e no caminho o precário CD player, do não menos precário barco que o conduz, toca a canção Verde: “De repente me lembro do verde, a cor verde é a mais verde que existe, a cor mais alegre, a cor mais triste, o verde que vestes, o verde que vestistes”. Muito apropriada à paisagem, pode-se ouvir a música inteira de Leminski, na voz de Caetano Veloso.

Durante a viagem, o filósofo (e a equipe de filmagem, claro) chama atenção de quem vai passando, o estranhamento provocando diversão. Nas tomadas feitas em uma feira popular, acentua-se a impressão de distância entre Descartes e o contexto local, mesmo quando o filósofo francês parece achar gostoso dançar colado e quando prova uma enorme abóbora, em uma cena cuja composição – e golas, punhos e cor – parece ter sido diretamente inspirada pela famosa Lição de anatomia de Rembrandt.

Em Brasília, a mais cartesiana das cidades brasileiras (“Construção com espaço calculado para as nuvens”, escreveu sobre ela Clarice Lispector), o estranhamento surge nas imagens do cineasta que desfocam as figuras e reduzem a cor, transformando o rigor plástico das formas em fotogramas evanescentes. E quando Descartes vai à praia, suas últimas certezas desaparecem em um magnífico delírio entre terra e água.

Junto com a poderosa poesia de Leminski, o filme de Cao Guimarães provoca intuições e sentimentos dos quais nem me julgava capaz, e estica tanto as cordas do sentido que é quase um alívio quando a cena muda. A beleza dói. A vibração que o filme produz parece dizer: “Eis o sentido da arte”.

Então, pensei: se a última publicação – com capa de cor vibrante – de Leminski vendeu mais do que os trocentos tons de cinza, porque não exibir para um público mais amplo certos filmes que realizam a herança poética do cinema brasileiro (vinda do mineiro Humberto Mauro e de Glauber Rocha, entre outros), como os do próprio Cao Guimarães? Belo Horizonte merece ver o que se vê em Berlim...

. Leca Kangussu é professora de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).

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