Cineasta paraibano relembra os momentos tensos da perseguição da equipe de Eduardo Coutinho

por 08/02/2014 00:13
Vladimir Carvalho/Especial para o Estado de Minas

Conheci Eduardo Coutinho nos idos de 1962, num período de intensa efervescência na vida política e social brasileira, estando as pretensas reformas do governo João Goulart na ordem do dia. Nosso encontro se deu por ocasião da passagem pela Paraíba da UNE Volante, caravana de artistas e militantes da União Nacional dos Estudantes, que objetivava, por meio das artes, mobilizar nossa sociedade em torno de sonhadas transformações estruturais. Coutinho chegou com uma câmera Bell and Howell, de 16mm, que ele mesmo operava sabe Deus como. Vinha no encalço do movimento das ligas camponesas, que se alastrava pelo Nordeste como um rastilho de pólvora.

Recordo-me de tê-lo apresentado a Elisabeth Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira, que fora assassinado em abril daquele ano e que, como eu, militava no Partido Comunista Brasileiro. Por aqueles dias aconteceu em Sapé, terra de João Pedro, um agitado comício e o até então desconhecido cineasta foi levado de roldão pela ardorosa militância e não fugiu aos reclamos do momento. Quando dei fé, lá estava Coutinho de microfone na mão, em cima do rústico palanque ali armado. Isso, na mesma Sapé, caminho de formiga da imprensa internacional, que, um ano depois, receberia a visita – fato pouco conhecido – simplesmente de Juscelino Kubitschek, que queria ver de perto as ligas e foi ali carregado nos braços do povo. Conhecendo o autor de Cabra marcado para morrer como conheço é que posso avaliar hoje o quanto lhe custou a experiência.

Culto e capaz de digressões complexas, mas não de muito falar, foi só pela causa que aceitou posicionar-se no palanque ao lado de exaltados camaradas. Com uma dicção peculiar, quase sempre atropelada pela rapidez de seu pensamento e de seu proverbial senso de humor, era um desperdício naquela fila de oradores de rua. Depois, fomos conversar. Como ele já sabia da minha participação em Aruanda, de Linduarte Noronha, e de que já dirigira meu primeiro filme, Romeiros da guia, puxou da capanga o roteiro do documentário que queria fazer sobre João Pedro, provisoriamente chamado de Morte em Sapé, e convidou-me para ser seu assistente.

Daí por diante nos entendemos a tal ponto que, no ano seguinte, passei a colaborar na preparação do Cabra marcado para morrer e, em março de 1964, entrávamos de cabeça em intenso trabalho de filmagem no Engenho Galileia, perto de Vitória de Santo Antão, no interior de Pernambuco, epicentro da luta dos camponeses nordestinos. Tudo corria bem, até que um transtorno obrigou-nos a uma parada drástica de três dias no trabalho: nossa câmera (a única) pifou e Cecil Thiré ofereceu-se para levá-la ao Rio de Janeiro com vistas a um conserto urgente. A volta do assistente, ansiosamente esperada, foi regada de entusiástico relato de Cecil, porque, por uma feliz coincidência, assistira no Rio à histórica pré-estreia de Deus e o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha, numa memorável e consagradora sessão para a classe cinematográfica. Nosso “emissário” não parava de falar e contar lances do filme, siderado pelo impacto e comoção que causara, deixando todos nós ansiosos para ver aquela que seria considerada uma das obras-primas do cineasta baiano.

Ainda comentávamos o feito de Glauber quando, semanas depois, uma notícia caiu como um raio entre nós. Vivíamos a fase das cenas noturnas do roteiro e rodáramos a sequência justamente em que o personagem de João Pedro Teixeira é levado preso de seu casebre, arrancado das mãos de Elisabeth, em cena de grande tensão dramática. Ao fim da madrugada, voltamos à nossa base na cidade para o descanso habitual e já havíamos nos recolhido quando fomos abruptamente despertados por alguém da produção, porque vizinhos tinham vindo avisar, manhã alta, que a revolução (?) estourara e que devíamos entrar em prontidão.

Eu partilhava um quarto com Coutinho e não raro o surpreendia no meio da noite acordando para pitar o seu indefectível cigarro, mas naquela hora foi desperto de supetão. Mal refeitos do susto, convocou-se rápida reunião com toda a equipe para saber o que de fato ocorria e que rumo tomar. Procurou-se ouvir o rádio, mas as notícias eram tão desencontradas e nossa primeira interpretação foi de que se tratava de um movimento de apoio ao presidente João Goulart, e que, portanto, devíamos nos juntar de alguma forma a ele.

Não demorou e as evidências nos mostraram o nosso equívoco, com os rádios já anunciando uma ação de caça aos subversivos. Éramos conhecidos em Santo Antão como os “cubanos das filmagens”, por causa de nossas barbas crescidas, no estilo Ruy Guerra, e logo cuidamos em pô-las de molho. Juntamos os objetos que podíamos levar na arribada e deixamos todo o supérfluo para trás. Certos do perigo, pegamos a Rural Willys e o jipe da produção e nos mandamos de volta para o Engenho Galileia, com o intuito de nos juntarmos aos camponeses e organizá-los, vejam, para a resistência.

Instinto de classe Os que foram conosco eram naturalmente os mais ligados ao projeto político do filme, os da equipe de direção, com Coutinho e Fernando Duarte à frente. Os outros, motoristas, maquinistas etc., julgando-se descomprometidos, se deixaram ficar na casa ou flauteando pela cidade, indiferentes aos acontecimentos. Nós, não! Romântica e ingenuamente, mas de acordo com o clima político em que se vivia, iríamos resistir. Recordo-me de lance curioso antes de partirmos para Galileia: foi que, num rompante, típico de quem estava por fora, o boa-praça do Rizzo, chefe eletricista, supondo estar agradando ao Coutinho, simplesmente, pasmem, propôs lançar em algum ponto da região um cabo de aço sobre as linhas de transmissão da Chesf, o que acarretaria, segundo seus cálculos, deixar todo o Nordeste fora do ar e às escuras, porque totalmente privado de energia elétrica. Assustado, vi o Coutinho enrubescer, numa reação já minha conhecida quando algo o afetava emocionalmente. Controlou, entretanto, a sua indignação, mas repeliu drasticamente a tresloucada proposta, e o Rizzo não teve alternativa a não ser reconhecer a sua maluquice e foi tratar de salvar a própria pele.

A caminho de Galileia, destruímos um pontilhão na estrada para dificultar a passagem de quem quer que fosse em nossa perseguição e rumamos para o engenho, mandando chamar os camponeses para uma reunião, no transcurso da qual, eles, sintomática e sabiamente, se mostraram refratários e prevenidos na avaliação dos acontecimentos. Marinheiros de primeira viagem, queríamos pôr em prática a propalada aliança com os trabalhadores do campo, porque estávamos convictos de que iríamos resgatá-los de sua condição de miséria. Essa ideia era puxada por Marcos Farias, nosso diretor de produção.

De minha parte, fiquei chocado quando notei que as lideranças de Galileia não queriam participar da luta como propúnhamos. Não percebi de pronto a instintiva sabedoria daqueles pobres homens. Nossas falas e arroubos caíram felizmente no mais silencioso vazio. Prudentemente e em sua linguagem tosca, mas clarividente, eles nos aconselharam a nos retirar levando toda a nossa tralha e carros. Para isso, Braz, um camponês de um olho só, como Camões, foi contundente e falou por todos os seus pares: “Vosmissês ainda pode se salvar, mas a gente não”. A certeira intervenção de Braz foi água na fervura. A nossa ridícula resistência terminou ali.

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