Luz entre sombras

Com o livro Entressombras, a poeta Yeda Prates Bernis se aproxima da angústia e do sentimento de melancolia para expressar estados profundos da existência humana

por 01/02/2014 00:13
Jair Amaral/EM/D.A Press
Jair Amaral/EM/D.A Press (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Audemaro Taranto Goulart



Yeda Prates Bernis lançou recentemente seu Entressombras, mais um livro de poemas. São versos inconfundíveis, com a marca de Yeda. Lendo-o, vi-me em 1982, quando participava da comissão julgadora do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na área da poesia. Eu, Márcio Sampaio e a saudosa Elza Beatriz julgávamos os trabalhos que líamos com cuidado e critério. Eu me decidi por um conjunto de poemas delicados e sugestivos, de onde emanava uma luz diferente cuja sedução aumentava com o passar das páginas. Era o Pêndula, que depois vim a saber fora escrito por Yeda Prates Bernis. No momento da escolha final, Márcio Sampaio optara por um outro livro. Elza Beatriz hesitava indecisa, mas, ao final, acompanhou Sampaio. Perdi a escolha mas mantive o meu voto em Pêndula.

Pouco tempo depois, Elza Beatriz me revelou numa conversa que também ia ficando encantada enquanto lia os versos de Pêndula, mas chegou a um determinado ponto em que reconheceu alguns poemas que Yeda, bem antes, lhe havia mostrado. Identificada a autoria, Elza Beatriz foi assaltada por um excesso de escrúpulo. Se votasse no livro estaria escolhendo o trabalho da amiga. Entre a dor de consciência e a dor de cabeça, Elza preferiu esta última. E Pêndula ficou em segundo lugar.

Essa volta ao passado se deve ao mesmo encanto com que fui lendo os poemas de Entressombras.  Na comparação com Pêndula, publicado em 1983, salta, imediatamente, a diferença de tom que rege cada obra, mas há um vínculo mágico que as liga, conforme se poderá ver em seguida.

O livro de 1983 formata-se a partir do Eclesiastes: “Para tudo há um tempo. Para cada coisa há um momento debaixo dos céus”, como dita uma epígrafe geral que abre o texto. E o fluxo do tempo é a condição marcante na elaboração dos poemas, mostrando que tudo tem o seu momento e a sua vez. E como a vida e o mundo são plenos de contrastes, não espanta que alguns poemas flagrem frustrações como expressam esses versos de “Viagem”: “Escalo noites,/ açoites calo./ Abraço o espaço/ da fantasia/ – vã geometria./ Caminhos espantos./ E no embornal/ de sonho e sal/ guardo meus cantos”. Entretanto, os poemas de Pêndula se fazem acompanhar de uma claridade que sempre desencobre os vultos, tornando-os figuras que se distinguem por contornos definidos. Assim, o que seria apenas lamentos impõe-se também como uma voz serena e crítica que aponta desconfortos, mas que também se substitui por acentos de acalmia e de doçura em outros poemas.

Esse tom, no entanto, muda quase completamente no Entressombras. Já o título é um indicador do perfil do livro que se faz atravessar de um nítido sentimento de melancolia. E há razões ponderosas para que as coisas se mostrem dessa forma. Esse sentimento, no entanto, vem vazado num conjunto harmonioso, que descarta uma curiosidade natural de se tentar identificar as suas causas. Não é preciso saber, precisamente, o que origina o tom melancólico, até porque ele transita numa dimensão humana que revela o que se poderia chamar de unidade psíquica do ser.

Seria proveitoso lembrar como a poesia sempre projeta sinais de uma angústia existencial que onera o ser de modo irreversível, o que tem origem na própria essência humana, marcada por um processo que se inicia com o nascimento. É ali que, separado da mãe, instala-se no ser a falta, condição que a psicanálise situa como movimento que o sujeito realiza no sentido de suprimir esse hiato que o acompanha por toda a vida e que é o móvel de sua busca e de sua trajetória no mundo. Essa ânsia de superação de um vazio impõe, simultaneamente, a busca de um saber revelador mas que também se configura como uma impossível totalização, originando-se daí a angústia existencial.

Um poeta em que tais traços se colocam de modo incisivo é Fernando Pessoa. Sua obra projeta um ser mergulhado na busca de um acerto consigo próprio, na tentativa de entender verticalmente a vida, num movimento em que a única possibilidade de compreensão está nos escaninhos da poesia. Aliás, essa procura de algo novo teria sido responsável pela surpresa e incompreensão que a obra pessoana provocou em seus contemporâneos, deixando para a posteridade o reconhecimento da genialidade do poeta.

Água e solidão

O Entressombras de Yeda Prates Bernis é uma ilustração do quanto se disse. Os poemas envolvem-se numa angústia que encontra seu resgate na produção mesma da poesia. É notável como os textos fundam-se num jogo de metáforas bastante reconhecíveis a uma primeira leitura. Assim, de imediato, percebe-se que a metáfora principal que domina o livro identifica-se no significante “água” que conota diversas manifestações ameaçadoras como a voragem que destrói (“O que desorienta no mar/ é sua insaciável fome/ de navios e de homens”), a perda incontrolável (“Aprisiono o dia/ e ele água/ em minhas mãos escorre”), o caminhar para o inexorável (“Resta navegar nas águas deste Agora/ até desaguar na imensidão/ de um mar”). Outros significantes transitam pelos poemas, sinalizando a ideia de perda, de sofrimento, de solidão, de passagem, tudo ecoando o sentimento de melancolia, de angústia e de perda. São tão fortes tais manifestações que não escapa ao leitor a condição de perplexidade do eu poético diante de um mundo incompreensível que apenas oferta sonhos que se perderam e lembranças que perduram como signos de uma ausência.

Mas em meio a tudo isso, esplende a força do jogo poético. É o momento em que as coisas passam a ser vistas num plano superior que elimina as frustrações, regenerando o espírito e criando forças que fazem frente à incompreensão da própria existência. É aí que a força notável da criação poética redime, ensina e apazigua. Pode-se ver isso muito claramente no Entressombras, uma vez que vários poemas fazem contraponto ao tom melancólico, trazendo a luz de uma nova compreensão dos mistérios da vida. É a força redentora da poesia que se faz presente, como se pode ver no poema “Exílio”, que revela como a luz ilumina as sombras:

Com penumbra                    Bordo palavras
incertezas me habitam         neste papel    
sombras me possuem          estrelas, arco-íris, luar
trevas me exilam.                 e viajo na luz.
    
No poema “Louvação”, a imagem do rio aparece mas desvestida da sua feição ameaçadora, eis que agora suas águas transfiguram-se como poesia: “Louvar o rio/ com seu cortejo/ de nuvens e claridades. Louvar o rio/ orvalhando estrelas/ na página deste poema”.

A força redentora da poesia passa por vários poemas, mas encontra admirável síntese em “Borges”, sobretudo porque a figura do poeta argentino decalca de modo perfeito o sentimento e o encontro da redenção que a poeta reconhece como o seu próprio mundo e a sua vida.

Em profundo mar noturno                  E venceste a escuridão
sombras mergulharam teus olhos     com a luz do imaginário.
letras escaparam dos livros               Peleaste con angeles y demônios
para o abismo do nada.                     Espejos y laberintos
                                                           e tua luta rende incomparável beleza.

Essa é, pois, a maneira como a poeta suplanta as suas vulnerabilidades para manter-se à tona das águas em que desliza. A força da poesia é que lhe confere esse poder transformador, revelando como é possível fazer da criação artística um processo efetivo de reinvenção da vida.


. Audemaro Taranto Goulart é professor da PUC Minas.

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