Lorenzato, moderno e popular

por 25/01/2014 00:13
Coleção Antonio Carlos Figueiredo/Divulgação
Coleção Antonio Carlos Figueiredo/Divulgação (foto: Coleção Antonio Carlos Figueiredo/Divulgação)
José Aloise Bahia

Filho de italianos, nascido em Belo Horizonte, Amadeo Luciano Lorenzato (1900-1995), que conheceu Picasso e Matisse nos famosos cafés Lê Dome e La Coupole, em Paris, é provavelmente um dos últimos pintores modernistas na história da pintura brasileira. Os seus trabalhos, além de fotos, vídeos e objetos, em exposição no Centro de Arte Popular, em Belo Horizonte, longe de ser primitivos ou naïfs, têm técnica e requinte que os distinguem dos demais: foi o único que se tem notícia a usar a textura feita com um pente, reavivando formas e resplandecendo as cores em papelão forrado de tela ou eucatex.

Os conteúdos explorados por Lorenzato projetam retratos, favelas, naturezas-mortas, passando pelas paisagens (céu, árvores e estradas são recorrentes) e imagens do cotidiano (notadamente em suas pinturas mais aclamadas pela crítica, as famosas cenas de mulheres com latas d’água nas cabeças ao pé da serra em Belo Horizonte) revelam aquilo que o pintor francês Henri Rousseau mais primava num artista: a síntese e o compromisso com a liberdade de criação. Tanto a liberdade temática quanto a combinação de cores, realinhando a narrativa dos elementos articulados pelo pincel em camadas vigorosas de tintas, com o rigor de uma poética original, que soube explorar muito bem a sua linguagem, não tendo temor de se arriscar à mostra intencional de composições previamente escolhidas do meio popular.

A grande diferença dos quadros de Lorenzato, admirador dos impressionistas e do falecido contemporâneo fauvista mineiro Inimá de Paula, em relação aos artistas primitivos, naïfs e à própria pintura fantástica e detalhista do francês Henri Rousseau é, além de ter estudado na Europa – mesmo que seja por pouco tempo –, o fato de que seus quadros não obedecem aqualquer itinerário preestabelecido. Não faz curvaturas nas técnicas elaboradas pelas academias, nem se aterra num fazer ingênuo. Segue um lastro variado nas suas composições, que estão predispostas ao geometrismo aparentemente simples, porém complexo, cujo extremo é a reunificação com o todo na distribuição minuciosa dos motivos no espaço pictural, abrindo-se como possibilidade imaginária de libertação da cor, fenômeno perceptivo de criação, dando a sensação de um possível movimento acalmado, no qual informação e expressão estão aprumadas, alinhadas, em consonância.

Não resta dúvida de se que trata de uma criação espontânea, assegurada na independência de julgamentos estéticos precipitados, fundamentada na sua visibilidade própria. Pois o tratamento dado às cores transparece o “estado atemporal da arte” que não pende para qualquer tipo de extremismo artístico. Vai além, alterna uma comoção moderna, definindo-se em formas e resoluções consistentes, despojadas de interesses facilitadores ou efeitos miraculosos para representar as aparências da realidade. As cores pulsam em desenhos concentrados.

A obra de Lorenzato nos faz lembrar o desejo estético de Paul Gauguin: “A cor é capaz de alcançar aquilo que é mais universal e, ao mesmo tempo, mais evasivo na natureza: sua força interior”. As cenas vibram, falam por si. Não têm a opulência de um Antônio Poteiro. É uma pintura breve, numa figuração rica e elaborada, produto de uma técnica própria. Os elementos formais estão distribuídos à sua maneira, de forma equilibrada e sempre perseguindo a coerência interna no uso de pigmentos realçados por matizes fortes. Vigorosas pelo entalhe e a experimentação do pente arranhando o suporte, produzindo “efeito tensional cumulativo” na autonomia da obra ao expor a sua visão plena da realidade acompanhada de um sentimento humano que perfaz algo contemporâneo e ecológico conscientes. O principal é que é pela pintura que Lorenzato se realiza e não pelos motivos e temas escolhidos. É o tipo de pintura elevada, amadurecida, arguta, sensível, uma alegoria universal em cores sempre em potência contínua, em escala e dinâmica, transparecendo uma espécie de colagem de tempos diversos.

Cada leitura dos seus quadros enriquece o olhar e aguça o espectador em torno da singularidade do artista e a sua concepção intrínseca, que alguns ainda ousam achar ingênuas. Quando, na realidade, é o contrário, traz a síntese moderna no plano estético, em diálogo com as palavras de Paul Klee: “A arte não reproduz o visível; ela torna visível”.


José Aloise Bahia é escritor, pesquisador e crítico de artes e literatura. Autor de Pavios curtos (Anomelivros).

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