Líquida e incerta

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman tem dois livros lançados no Brasil, que tratam dos descaminhos da cultura no Ocidente e da obsessão pela vigilância na pós-modernidade

por 25/01/2014 00:13
Eloy Alonso/Reuters
Eloy Alonso/Reuters (foto: Eloy Alonso/Reuters)
João Paulo

 

Em 1930, Freud publicava O mal-estar na civilização. Ao mesmo tempo dava uma boa e uma má notícia às pessoas. Pessimista, ele sabia que não chegaríamos ao prazer que desejamos sem destruir tudo à nossa volta; realista, confiava na capacidade de criação e contenção para que a vida fosse o mais agradável possível. O livro poderia ser resumido numa frase: a civilização é resultado de nossas renúncias. Em outras palavras, o homem se autocriou e de quebra deu origem à cultura para fazer frente ao excesso que emana do princípio do prazer. No lugar do gozo permanente, que nos destruiria, barganhamos com os limites da realidade. E seguimos em frente, da melhor maneira possível.

O diagnóstico funcionou, mas parece que foi virado de cabeça para baixo: a realidade, hoje, é muito pouco. Ninguém quer saber de renunciar a nada em nome da coletividade. O homem e a mulher pós-modernos não aceitam abrir mão do prazer individual. Em outros termos, o princípio de realidade, que foi o esteio da civilização até pouco tempo atrás, hoje anda em baixa e precisa se justificar a cada prazer adiado. O resultado, com a retirada das condições universais de sobrevivência, é cada um por si impulsionado pelo prazer, que se torna um valor em si, a ser exibido como um troféu.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi quem melhor identificou essa virada. Em sua obra, que ultrapassa os 30 livros lançados no Brasil nos últimos 15 anos, ele esmiuça, com as ferramentas da sociologia e da política, o esgarçamento dos laços que sustentam o projeto da modernidade. Para Bauman, vivemos tempos líquidos, fluidos, em que a solidez do mundo escapa por entre os dedos em busca de nova síntese e projeto de civilização. A pós-modernidade não é um desdobramento da modernidade, mas a expressão do seu fracasso.

Dois novos livros de Bauman, publicados recentemente no Brasil, dão sequência ao projeto do autor de mapear os territórios contemporâneos: A cultura no mundo líquido moderno e Vigilância líquida. A obra do sociólogo parece se desenvolver em rizomas. Alguns temas que apenas apontam em algumas publicações se destacam em outras; o que é estilo sistemático num livro pode ganhar versão dialógica em outros volumes; a argumentação cerrada se equipara aos artigos mais ligeiros. Cientista que não perde sua postura de intelectual público, a forma de cada livro parece responder ao problema demandado por seu tempo e pelo interlocutor do momento.

Em A cultura no mundo moderno  estão reunidos seis ensaios que problematizam a noção de cultura numa sociedade que dissolveu todas as hierarquias em nome da primazia do indivíduo. No mundo líquido-moderno, todos se tornam consumidores (inclusive de bens culturais), desmanchando a noção unitária de cultura como um conceito organizador da vida social e política. Nos ensaios que integram o livro, Zygmunt Bauman reflete sobre a trajetória deste descaminho.

A primeira perda se dá quando a cultura, conceito criado há 200 anos, deixa de ser algo que aponta para as mudanças e aprimoramento necessário da vida social e se torna apenas um objeto consumível entre outros. Da vocação missionária, a cultura descamba para a tarefa de satisfazer necessidades banais, a busca de prazer imediato, o apetite da singularidade, a sedução da moda e a vontade de ser igual. Curiosamente, o que padroniza demais acaba por criar as distinções, gerando o cenário da pluralidade da cultura ou das culturas, que ganha território no chamado multiculturalismo. Na contramão dos que bradam pela diferença, Bauman tem a lucidez de clamar pela igualdade perdida.

“A cultura hoje se assemelha a uma das seções de um mundo moldado como uma gigantesca loja de departamentos em que vivem, acima de tudo, pessoas transformadas em consumidores.” Para Bauman, o projeto da cultura, em razão desse desvio preocupante e alienante, ainda está por se fazer, precisando recuperar sua inspiração originária. Cabe a ela, em vez de seduzir, esclarecer; no lugar de satisfazer necessidades, criar outras mais ambiciosas; em vez de garantir a pacificação das consciências, criar ansiedade pela mudança; destronar o consumidor para recolocar em seu lugar o cidadão. Mais que tudo, a cultura precisa fugir da tentação da satisfação total e definitiva, que não deixa espaço para a fantasia. Sem utopia não há cultura. O fim das utopias pode ser o túmulo da cultura como a concebemos nos últimos dois séculos.

DE OLHO “Sorria, você está sendo filmado.” O que era para ser um aviso parece, ironicamente, uma ameaça. A vigilância está em todo lugar. Somos monitorados, fiscalizados, vigiados, invadidos, escaneados e uma série de outras ações invasivas que parecem naturais. Mais que isso, assentimos a vigilância como uma condição do nosso tempo. Assim como no século 16 o filósofo Étienne de la Boetie falava em servidão voluntária, hoje somos todos voluntariamente vigiados. Temos prazer em ver reportagens de televisão que mostram assaltos flagrados por câmeras, como se isso justificasse de alguma maneira nossa submissão ao Big Brother.

Nos aeroportos os corpos são escaneados, numa operação quase pornográfica; nas redes sociais, os usuários são objeto da ganância dos provedores, que transformam a intimidade em informação negociável; entre as nações, países poderosos invadem a privacidade de chefes de Estado em nome da segurança mundial, ao mesmo tempo que posam de vestais da liberdade. A vigilância, nos termos de Bauman, se liquefaz, se insinua, se torna invisível. Os drones reais se tornam metáforas da capacidade de vigilância ubíqua.

Este cenário é o tema de Vigilância líquida, livro organizado a partir de troca de reflexões de Zygmunt Bauman com o sociólogo David Lyon, professor da Universidade de Queens, no Canadá. Os diálogos tratam de temas como a perda do anonimato nas redes sociais (“o privado é público”); a dimensão tecnológica da vigilância atual (em contraste com a dimensão sólida de épocas anteriores, como a do panóptico descrita por Foucault); as formas de vigilância global em razão da ameaça do terrorismo (como se segurança e liberdades civis constituíssem um jogo de soma zero); e as questões éticas em torno da vigilância (como o uso de informações pessoais para alimentar perfis de saúde e com isso limitar a cobertura dos planos de alguns pacientes), entre outros.

Vigilância líquida traz questões importantes e elege bons interlocutores. Além de Foucault, Bauman e Lyon ampliam suas reflexões até pensadores como Agnes Heller, Derrida, Deleuze, Hannah Arendt e Agamben, além de romancistas como Michel Houellebecq. Como se vê, nem só de política se alimenta a obsessão pela vigilância na sociedade dita livre. Com sua liquidez capaz de ocupar todos os espaços, a vigilância parece resumir também a ambição pela esperança. O que é tema do último diálogo do livro. “Podemos ser ‘confinados’ e ‘capturados’, mas também ‘pulamos’, mergulhamos e submergimos por vontade própria, no último sustentáculo de nossa esperança.” Bauman não cessa de acreditar no homem, embora desconfie dele por método e experiência.



A VIGILÂNCIA LÍQUIDA
. De Zygmunt Bauman
. Editora Zahar
. 160 páginas
. R$ 36,90




A CULTURA NO MUNDO LÍQUIDO MODERNO
. De Zygmunt Bauman
. Editora Zahar
. 112 páginas
. R$ 34,90

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