Em busca da delicadeza perdida

por 11/01/2014 00:13
Annie Leibovitz/Divulgação
Annie Leibovitz/Divulgação (foto: Annie Leibovitz/Divulgação)
João Paulo



O mundo está uma selva. A todo momento esbarramos com um tipo de violência que, é claro, não se compara com os grandes crimes, mas que mina a vida em comunidade e parece nos afastar das pessoas que não fazem parte do nosso círculo mais familiar e imediato. O resultado, como dá para perceber, é um estrangulamento do mundo, um resumo da vitalidade às suas mínimas condições de operação. Para um mundo menor, uma vida menor.

No arco de um único dia é possível conviver com vários atos de descortesia, impunidade, corrupção, falta de modos, preconceito, discriminação, autoritarismo e agressividade. A vida social vem sendo figurada como uma guerra de todos contra todos, tendo como recompensa aos vencedores o livre impulso para usar a humilhação e a força sobre o mais fraco. O que espanta ainda mais é o assentimento em torno dessa forma de violência. Há muitos que defendem que um serviço não prestado ou feito com ineficiência é motivo bastante para reduzir o outro a objeto de ira e constrangimento. A forma arrogante como o consumidor trata funcionários de empresas aéreas e operadores de telemarketing só se nivela com a grosseria anônima dos covardes na internet.

E os territórios da descortesia são também variados: dentro de casa, nas relações verticais e ausência de diálogo; no trabalho, na reprodução de comportamentos autoritários; nos negócios, na tendência a ver o outro como adversário ou idiota que deve ser passado para trás; no trânsito, na forma agressiva de ocupar espaços, usar a lei do mais forte (o carro contra o corpo do pedestre) e fazer do interesse pessoal algo que sobrepuje o bem comum (parando em filas duplas e fechando cruzamentos).

Há muitos séculos, o filósofo holandês Espinosa definia a felicidade como uma forma de expansão do mundo. Assim, as pessoas felizes seriam aquelas capazes de expandir suas relações, seus interesses, seu universo de trocas. Quanto mais pessoas – e entre elas as mais diferentes – fizessem parte de nosso ambiente moral, maior a possibilidade de alegria. Na via inversa, a tristeza poderia ser definida como a tendência a se concentrar em poucas ações, em conhecer menos gente, em atuar em contextos mais reduzidos.

A ideia é boa e funciona. É só pensar, em qualquer situação, qual seria a opção que nos faz maiores e com áreas ampliadas de interseção com o outro. Esta será sempre a melhor via para quem busca a alegria no mundo. Por outro lado, ao se aferrar em certezas que dividem, em comportamentos que apartam, em ações que diminuem a diferença, o caminho da tristeza começa a ser trilhado. E é preciso lembrar que há uma tristeza ruidosa, falsamente alegre, como o riso das hienas. Para usar uma terminologia política clássica, a tristeza é de direita (os conservadores, como o nome indica, não querem mudanças) e a alegria é de esquerda (os progressistas, por definição, acreditam que a ação precede o conceito).

A filosofia espinosista da ênfase positiva do papel da diferença na vida dos homens pode ser considerada a base de um dos melhores livros lançados recentemente, Perto da árvore, de Andrew Salomon (Editora Companhia das Letras). O jornalista americano, que já havia estudado a depressão no já clássico O demônio do meio-dia, toma como tema de seu novo estudo o amor dos pais pelos filhos. A princípio parece um tema comum, já que não há nada mais universal que um pai e uma mãe amarem seu rebento. No entanto, o autor vai no limite dessa verdade: será que os pais amam igual, caso se trate de uma criança diferente do padrão?

Gay e disléxico


Salomon, que viveu na pele a desconfiança dos pais por ser disléxico (quem diria que viria a escrever um livro como Longe da árvore, magistral e com quase 900 páginas) e gay (é uma questão lógica, a maior parte dos gays são filhos de heterosssexuais). Por isso quis investigar como os casais rejeitam e passam a amar os filhos que se afastam do padrão de afeto que criaram em suas fantasias – a maior delas a de se eternizar no destino heroico que programam para o filho. Para isso ele mergulhou em universos que sabemos que existem, mas que são preservados do nosso contato por uma operação que mescla discrição e constrangimento.

Surdos, anões, portadores de síndrome de Down, autistas, esquizofrênicos, portadores de deficiências múltiplas, crianças prodígios, filhos concebidos por estupro, transgêneros e menores infratores. Essas são as 10 “identidades horizontais”, ou seja, que divergem dos padrões familiares, linguísticos e sociais mais correntes, que passam a atrair a atenção do autor. Além de descobrir um mundo riquíssimo de substância humana, pleno de sentido e capaz de realizações sublimes, Salomon volta sua atenção para os pais e seu empenho em amar aqueles que, a princípio, rejeitam.

A grande lição do livro é que o amor cresce com a diferença. Mais que isso, os pais, que deixam de lado seu esforço narcisista de se realizar por meio do filho, se tornam mais livres para amar e conhecer o mundo. Eles também ficam melhores. Salomon acompanhou muitas histórias para descobrir, mais que uma lei do afeto familiar, uma saída para um mundo que insiste em perder sua vocação para a alegria. A aposta no amor – a começar por filhos “diferentes” – permite expandir nossa vocação para o contato humano. Em outras palavras, a sermos mais felizes.

Assim como os filhos não existem para realizar nossas fantasias, nossas existências não precisam ficar presas nas expectativas que foram depositadas sobre nós. A psicologia, psicanálise, terapia, ou o que seja, é uma forma de buscar a liberdade. Outra via é a política, que permite que sonhos coletivos se concentrem no imaginário de grupos comprometidos em fazer dos homens pessoas mais completas. Mas há um caminho intermediário, meio pessoal, meio coletivo, que aponta para comportamentos bem mais simples e igualmente efetivos: a delicadeza.

O mundo não vai deixar de ser uma selva apenas com terapia e revolução. Nem mesmo com a capacidade de os pais estenderem o amor de seus filhos ao amor de todas as crianças. Estamos precisando de uma dose mais urgente de política do afeto e afetividade política. Tratar bem os iguais é fácil e inócuo, quase uma atitude mesquinha em sua busca de reciprocidade. O que anda fazendo falta no mundo, e que pode adiar um pouco o estado de selva que nos cerca e ameaça, é a capacidade de ver o outro como pessoa, quem sabe como nosso filho que foge do padrão.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

MAIS SOBRE PENSAR