A chapa esquentou

Livro de Júlio Ludemir seleciona 101 canções para convidar ao mergulho no universo do funk. Fenômeno surgido na periferia carioca toma conta das festas e marca posição na música popular

por 28/12/2013 00:13
Beto Magalhães/EM/D.A Press
Beto Magalhães/EM/D.A Press (foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press)
Ângela Faria



Goste-se ou não do funk carioca, é fato: ele conquistou o seu espaço na música popular brasileira. Porta-voz das favelas e ainda considerado caso de polícia por muita gente, o batidão ganha livro em que sua trajetória é narrada por meio de 101 composições selecionadas pelo escritor e agitador cultural Júlio Ludemir, criador da Festa Literária Internacional das UPPs (Flupp) – a Flip da periferia. O jornalista Rafael de Pino e Écio Salles, ligado ao Centro Cultural AfroReggae, são parceiros dessa empreitada.

O songbook 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer (Editora Aeroplano) é um guia de canções. Não traz ensaios sociológicos, antropológicos ou estéticos, mas histórias que ajudam a compreender “a linha evolutiva” desse fenômeno cultural brasileiro, marcado pela proliferação de subgêneros e pela volatilidade de artistas. Enquanto velhos refrões são ouvidos até hoje nos estádios de futebol, incontáveis hits dos bailes fizeram apenas um verão – e ficaram nisso. Se Claudinho e Buchecha encantaram estrelas da MPB, outros MCs amargaram (e amargam) a sina de um sucesso só.

Se nos anos 1990 o som-de-preto-de-favelado chegou a emplacar sucessos no Programa da Xuxa, o funk carioca – estigmatizado depois do famoso arrastão na Praia de Ipanema – só se impôs graças ao rebolado do povão, seja nos bailes, na internet, desafiando a moral e os bons costumes ou fazendo troça da polícia. Ao proibir bailes que mobilizavam milhares de jovens da periferia, o governo fluminense entregou o funk de bandeja ao tráfico. A partir dos anos 1990, a festa se transferiu dos clubes de subúrbio para favelas dominadas por facções, as madrinhas do polêmico proibidão.

Hoje, o funk está no iPod da garotada, nas boates dos mauricinhos e nos discos de sertanejos universitários. Anitta, Naldo Benny, MC Leozinho e MC Koringa entram pela porta da frente do mainstream. Ao se tornar “funkeiro” e gravar Furdúncio para a trilha sonora da novela Salve Jorge, Roberto Carlos não veio “legitimar” o funk. O Rei simplesmente correu atrás.

“Na virada do século 20 para o 21, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social”, afirma a ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda. Ela é articuladora da coleção Tramas urbanas, que convoca os próprios protagonistas da nova cena para contar sua história. Outros volumes da Aeroplano abordaram o tecnobrega, o hip-hop e a inovadora experiência da Daspu, a grife criada por prostitutas.

Tido quase como “ofensa” por seus adversários, que o acusam de propagar a violência, as drogas e a pornografia, o universo do batidão é multifacetado, adverte o jornalista Rafael de Pino. Há artistas talentosos, outros não. Boas composições e outras sofríveis, argumenta. Letras tanto falam de amor e do orgulho de morar na favela quanto de sexo explícito. Enaltecem chefões do tráfico, mas não deixam de trazer a crônica social de um Brasil marcado pela injustiça e desigualdade. O português é ruim, mas dá o recado.

O funk carioca está dentro da casa do pobre, do remediado e do rico. É tocado em novelas, festinhas no play, comemorações de formatura e nos alto-falantes de carros tunados. Esse “lixo cultural” está também no radar de vanguardistas militantes como Tom Zé. O tropicalista deu uma aula de estética a Jô Soares ao analisar – e cantar – Atoladinha no “programa do gordo”. O divertido papo começou nas catacumbas da Roma Antiga e no canto gregoriano, passou pela bossa nova e abordou o “metarrefrão microtonal e polissemiótico” do refrão de Bola de Fogo e as Foguentas para alcançar o gozo feminino, historicamente reprimido. Para desespero de pais e mestres, Atoladinha caiu no gosto da criançada, assim como Cerol na mão e Eguinha pocotó, com suas letras de duplo sentido.

Barraco


Marco zero do funk carioca, Melô da mulher feia, execrado pelas feministas, é o bulliyng em forma de batidão. Gravada em 1989, a letra traz grosserias machistas embaladas pelo tamborzão. O troco – digamos, ideológico – demorou. Mas veio: em 2004, Tati Quebra Barraco, debochada e nem um pouco submissa, cansou de cantar Boladona e Sou feia, mas tô na moda em boates de gente fina e em bailes da periferia. A MC da Cidade de Deus levantou a bandeira da sexualidade feminina – sem meias palavras. E avisou: quem paga o motel é ela. Nessa seara, Só um tapinha (MC Beth e Naldinho), literalmente, acabou em pancadão. Feministas pressionaram o Ministério Público Federal a agir, acusando os autores de banalizar a violência contra a mulher. A defesa veio do “andar de cima”: Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto gravaram a o hit funkeiro criticando o conservadorismo sexual por trás da polêmica.

Antes que se acorrente o tamborzão à baixaria, é bom avisar: funk carioca fala – e muito – de amor. Claudinho e Buchecha romperam o apartheid musical: incorporaram a levada pop e fazem o Brasil cantar até hoje delicadezas como Quero te encontrar, Só love e Conquista. Kid Abelha, Adriana Calcanhotto e Celso Fonseca gravaram sucessos dos rapazes. Posteriormente, MC Leozinho faria o Brasil namorar ao som de Ela só pensa em beijar, com direito a uma versão “joão-gilbertiana” de Celso Fonseca. Até o Rei Roberto cantou “se ela dança, eu danço” em seu programa de fim de ano.

Crônica social, Rap da felicidade (Eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci) fala de sonho, de cidadania e de autoestima. A consagração não se limitou aos bailes: quando o jogador Adriano trocou a Europa pela Vila Cruzeiro, o primeiro gol em sua reestreia no Flamengo foi saudado pela arquibancada com o refrão de Cidinho e Doca.

De um lado, o funk consciente critica a violência e defende a autoestima das favelas. De outro, o polêmico proibidão enaltece facções do crime que comandam e aterrorizam a periferia, descrevendo o morro que o asfalto não vê. MC Smith foi parar na cadeia por apologia ao tráfico. Em Vida bandida, ele canta a saga de um desses “poderosos” em meio a cordões de ouro, armas, BMW e sexo com patricinhas da Zona Sul: “Nossa vida é bandida/ E o nosso jogo é bruto/ Hoje somos festa/ Amanhã seremos luto”. A “consciente” Rap das armas (Júnior e Leonardo), sucesso no filme Tropa de elite ao desfiar o pesado arsenal do narcotráfico, ganhou versão que se tornou “clássico” do proibidão ao enaltecer o poderio do “movimento” no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. Seu refrão, aliás, conquistou fãs na Holanda. É cantado até pela torcida do time sueco Djugardens If Fotboll na hora de incentivar os craques...

Champanhe Mais recentemente, surgiu o funk ostentação, que trocou cidadania, armas, Comando Vermelho e versos picantes por champanhe, BMW, tênis caríssimos e grifes importadas. Despolitizado, talvez, mas não deixa de ser trilha sonora do Brasil enfeitiçado por shopping centers, cartões de crédito e pelo vício do consumo.

Há tempos, o batidão deixou de ser coisa nossa. Paul McCartney elogiou a pegada do Bonde do Rolê. Em seu novo disco, Beyoncé gravou Blue, com direito a clipe rodado no Brasil. Há várias cenas de jovens dançando o passinho funkeiro. Em setembro, no Rock in Rio, ela já havia rebolado ao som do grudento “ah lelek lek lek”. A contragosto de muita gente, o som-de-preto-de-favelado canibaliza o mainstream – e isso não se dá pelas beiradas. Ele já virou música de boate, toca no disco do Roberto e virou trilha de desfile de Stella McCartney, a estilista filha de Paul. Resta saber se esses novos endereços do baile, já tão distantes da favela, vão desafinar – de vez – o tamborzão...

101 FUNKS QUE VOCÊ TEM QUE OUVIR ANTES DE MORRER
. De Júlio Ludemir
. Aeroplano, 268 páginas, R$ 30

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