Pessoas não humanas

A forma como os homens percebem e tratam os animais varia entre as culturas e através dos tempos. A Índia, com sua história de valorização de todas as formas de vida, tem lições que merecem reflexão

por 28/12/2013 00:13
Desmond Boylan/Reuters
Desmond Boylan/Reuters (foto: Desmond Boylan/Reuters)
Maurício Andrés Ribeiro


 
A Índia recentemente reconheceu os golfinhos como pessoas não humanas. Baniu os parques temáticos que os usam para diversão. Reconheceu que eles têm alto nível de inteligência e nos próprios direitos ao bem-estar, sendo inaceitável mantê-los em cativeiro.

A percepção dos humanos em relação aos animais, bem como as atitudes em relação a eles, variam ao longo do tempo e de cultura para cultura. Algumas civilizações têm uma perspectiva antropocêntrica e outras têm uma cosmovisão bio ou ecocêntrica. Para algumas, os animais são coisas e objetos, mercadorias, propriedades dos humanos; para outros, no outro extremo, eles são divindades. Alguns se ocupam de seu bem-estar, lembram a condição animal do Homo sapiens e os consideram como animais não humanos. Outros os elevam à condição de pessoas não humanas. Crescentemente tem-se estendido aos animais o status que se dá às pessoas físicas (indivíduos de carne e osso) e às pessoas jurídicas (empresas ou instituições). Tal atitude os retira da condição de coisas e os aproxima da condição humana.

No passado, vacas e outras espécies animais e vegetais foram divinizadas. Em religiões politeístas ou panteístas, os deuses assumem fisionomia e aspectos animais. Entre as grandes civilizações e tradições espirituais hoje existentes, a que mais explicita isso com clareza é o hinduísmo, no qual várias divindades têm expressão animal, a exemplo de Ganesh, homem e elefante; do boi Nandi, usado como meio de transporte por Shiva; de Hanumam, o macaco; ou da serpente Subramanian, entre outras.

Nas tradições hindu, budista e jainista, entre outras, os seres humanos são vistos como uma forma de vida e toda vida é respeitada e tem direitos a viver neste mundo.

“Vaca sagrada” é expressão por demais conhecida no Brasil e alude à relação dos indianos com os animais. Gandhi dizia que os antigos sábios de seu país tinham escolhido a vaca para ser sacralizada por sua importância nos serviços que presta e seu valor como uma segunda mãe para milhões de pessoas, a quem fornece o leite, o adubo, a força no arado e no carro de boi. Para ele, a vaca significava todo o mundo sub-humano, estendendo as simpatias, a empatia e a compaixão humanas para além de sua própria espécie.

A extensão aos animais do status de pessoa não humana, a sua sacralização e divinização, assim como os cuidados para com aqueles que prestam serviços de valor econômico, são aspectos de uma relação respeitosa e que os valoriza.

Na Índia, dois terços da energia usada no campo, para o arado ou para o transporte rural, provêm de animais de carga, principalmente mais de 80 milhões de bois e búfalos, um milhão de cavalos e outro tanto de camelos. O trabalho com os animais e a condução de 13 milhões de carros de boi empregam 20 milhões de pessoas.

Os indianos usam a ciência e a tecnologia para facilitar o desenvolvimento rural e para aprimorar as práticas tradicionais, agregando-lhes o conhecimento técnico e aprimorando o design. Quanto estudei na Índia, tive contato com pesquisadores a design de carros de boi. O projeto visava a reduzir o desperdício de energia animal, diminuir a crueldade com que eram tratados os animais que trabalham para o homem, modernizar o carro de boi e outros implementos agrícolas movidos a tração animal. O veículo foi redesenhado para reduzir sofrimento, danos e esforços desnecessários.

O projeto estimou que a capacidade de carga do carro de boi poderia ser dobrada sem sobrecarregar o animal. A redução do atrito por meio de uma plataforma mais leve, o redesenho das rodas, a utilização de pneus e diminuição do componente vertical de peso sobre o animal aumentam a vida útil do veículo, reduzem danos nas estradas e evitam o aparecimento de nódulos e de câncer no pescoço dos bovinos.

Não violência


A Índia apresenta uma longa história de valorização dos animais, por seu valor intrínseco e pelo valor dos serviços que prestam. As populações das aldeias respeitam os códigos religiosos criados por seus antepassados. Ainda hoje, há na Índia grande devoção pelos animais, que tem raízes na tradição religiosa e no princípio do ahimsa, ou não violência, que inclui tanto o mundo humano quanto o animal. Nos templos e em alguns centros de pesquisa do governo indiano podem ser obtidas preciosidades genéticas de espécimes de qualidade. O gado leiteiro de boa qualidade nos templos atende a necessidade de alimentar os pobres.

O relacionamento da população humana com a animal condiciona o tipo de desenvolvimento socioeconômico naquele país. Nas aldeias, cada búfalo ou vaca é objeto de cuidados domésticos. A alimentação e o pastoreio do gado são atividades diárias que ocupam as crianças e mulheres. À tardinha, eles são levados para pastar às margens das estradas ou nas terras públicas; à noite são levados para junto das casas de seus donos, para que o precioso esterco possa ser recolhido de manhã. Nas cidades indianas há uma diversidade de veículos nas ruas: riquixás, cavalos, camelos, elefantes, bois. Existe a convivência pacífica nas cidades, entre homens, bois, búfalos, macacos, pavões, corvos e outros animais.

Usa-se o boi vivo para o transporte, o arado e o adubo, mas evita-se que seja morto para servir como alimento.

O vegetarianismo baseia-se no princípio da não violência estendida para o mundo animal. Presente nos Vedas, antigos textos sagrados, tal princípio foi atualizado pelo budismo. A ideia de abstenção está presente nos principais preceitos e na ética budista, que propõe abster-se de causar danos a outros seres vivos. Os estudos de ecologia energética revelam a superioridade dos alimentos de origem vegetal sobre os de origem animal quanto à produtividade energética. O hábito vegetariano é muito menos impactante sobre o ambiente e o clima do que outros hábitos alimentares: a quantidade de água, de insumos agrícolas e a área de terra necessária para alimentar vegetarianos são menores que as necessárias para alimentar carnívoros.

Um cientista de ponta, o indiano Rajendra Pachauri, coordenador do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), recomenda diminuir o consumo de carne, de modo a reduzir a emissão de gases de efeito estufa.

A civilização indiana foi guardiã de valores como a sacralização dos animais, a não violência estendida a eles, o vegetarianismo. Tais valores e práticas hoje influenciam pessoas de outras formações culturais em várias partes do mundo.

Seres vivos

Cientistas têm estudado a sensibilidade, a inteligência e a consciência nos humanos e as capacidades cognitivas e o comportamento emocional dos animais. Eles estudam os sistemas nervosos de polvos, de aves como o papagaio cinzento africano, de mamíferos. Também os mamíferos terrestres e marinhos (baleias, golfinhos) têm sensibilidade, afeto, consciência, inteligência. Os pesquisadores constatam afinidades no funcionamento cerebral entre essas diversas espécies e realçam processos evolutivos similares. Como os humanos, os animais têm percepção por meio dos sentidos. O olfato, a visão e a audição de cada um cobre faixas diferentes daquelas percebidas pelos humanos. Eles veem e percebem, portanto, outros mundos.

Animais não são coisas, são seres vivos, com afeto, sensibilidade, sentem dor e medo. Têm valor intrínseco. Estudos científicos resgatam essa forma de considerá-los.

O status de pessoas não humanas que a Índia concedeu agora aos golfinhos é uma referência para atitudes na mesma direção a serem tomadas em outras sociedades. Artistas e ecologistas de valor, como Paul McCartney, militam pela causa dos animais e sensibilizam a sociedade, que se mostra cada vez mais aberta a questionar os pressupostos utilitaristas que justificavam uma relação mercantilista dos humanos com os animais, tomados como mercadorias, com valor de uso e de troca. Estamos evoluindo de uma postura em que animais são considerados coisas usadas a nosso bel-prazer, para outra em que sejam valorizados como pessoas não humanas.

Tais mudanças no modo de relacionamento de nossa espécie humana com os animais, reconhecendo o seu valor intrínseco e natural, e não apenas o seu valor como coisa ou objeto a ser explorado economicamente, são partes da mudança cultural necessária para ingressarmos numa era ecológica, na evolução neste planeta.

. Maurício Andrés Ribeiro é autor de Ecologizar, Tesouros da Índia e Meio ambiente e evolução humana.


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