Crescer não é fácil

O artista francês Régis Loisel lança adaptação de Peter Pan em quadrinhos, em três volumes de luxo editados pela Nemo. Destinada a adultos, a série se distancia da imagem pueril criada pela Disney

por 28/12/2013 00:13
Nemo/Reprodução
Nemo/Reprodução (foto: Nemo/Reprodução)
Valf

Quando se fala em Peter Pan, a primeira imagem lembrada, sem dúvida, é a do menino de roupa verde, chapéu com pena e uma pequena espada na cintura. Imagem eternizada pelo filme lançado pela Disney em 1953, no qual o personagem principal vivia suas fantásticas aventuras na Terra do Nunca ao lado da fada Sininho, dos Garotos Perdidos, de Wendy e de seus irmãos, e do terrível Capitão Gancho e seus piratas.

Concebida originalmente como uma peça teatral em 1904 pelo escocês James Matthew Barrie, veio a tornar-se livro apenas em 1911, com o nome de Peter e Wendy, posteriormente mudado para Peter Pan. Durante o último século, inúmeras releituras e adaptações foram feitas para a estória do “menino que não queria crescer” e uma dessas versões da obra infantojuvenil acaba de chegar ao Brasil. Foi lançado recentemente pela Editora Nemo o terceiro e último volume da série em quadrinhos Peter Pan, do francês Régis Loisel.

Com uma abordagem voltada para o público adulto, a história se passa como um prólogo para o livro de Barrie e, com a liberdade dada pela ficção, se aprofunda e alinhava importantes questões até então não levantadas na obra original. Quem é Peter Pan? Por que ele se recusa a crescer?

Publicada originalmente em seis volumes, entre 1990 e 2004, as mais de 300 páginas da HQ de Loisel criam com maestria um novo universo e dão respostas para aquelas perguntas. É preciso ressaltar que a base usada para isso em nada lembra os aspectos estéticos tão conhecidos de Peter Pan. A ambientação de Londres já nos mostra o quanto o artista francês se afasta dessas referências. É um lugar frio, sujo, cercado de párias de toda espécie. É nesse lugar que o personagem Peter vive.

Atormentado pelo conflito entre a fantasia do amor materno, que na verdade lhe falta, e a dura realidade do desamor de sua mãe alcoólatra, Peter busca na ilusão o seu refúgio. Seus amigos do orfanato (que mais tarde se tornariam os Garotos Perdidos) adoram ouvir seus casos e estórias, principalmente sobre os reconfortantes carinhos e afagos de sua mãe. E Peter, com todas suas forças, quer acreditar nisso também.

Porém, sua realidade é feita de outro material. Se no livro original o autor coloca os adultos em situações que poderiam justificar o desconforto em se tornar um deles (o pai das crianças, por exemplo, para se punir quando elas fogem com Peter Pan passa a viver na casinha do cachorro), Loisel dá reais contornos a seus medos e mais que razões para Peter abominar a ideia de crescer. A sedução de uma prostituta, a humilhação de ser despido em público em troca de bebida para sua mãe, um mendigo que tenta abusar dele... Enxotado de casa, Peter transpõe a realidade quando se encontra com a fada Sininho.

Novamente, não a referência conhecida, mas sim uma versão voluptuosa que mal cabe em seu corpete. Com a ajuda do pó mágico das fadas os dois voam para a Terra do Nunca. E é lá que Peter se encontra. Trazido como salvador dos habitantes da ilha contra a invasão dos piratas, pouco a pouco Peter vai se transformando e assumindo o papel de líder e vivendo suas aventuras. Mas a terra da fantasia pode ser tão cruel quanto o lugar de onde ele veio.

Medo profundo


Em uma passagem do primeiro volume, por exemplo, somos apresentados a uma criação da história em quadrinhos – Opikanoba – um lugar cercado de brumas eternas no qual quem entra tem que enfrentar seus mais profundos medos. E novamente a questão não resolvida com a figura materna vem à tona. Essa inadequação em relação ao sexo oposto aparece em vários momentos da trama, seja com a mãe, seja simplesmente não sabendo lidar com o afeto das outras personagens femininas.

Sininho, por exemplo, extremamente possessiva em relação a Peter, é levada à loucura por ciúme. No livro original, ela usa de uma artimanha para cometer um atentado contra Wendy e por pouco não consegue seu objetivo. Já na versão dos quadrinhos, é outra personagem que é vítima da cólera de Sininho e não tem a mesma sorte. Sininho, porém, tem na Terra do Nunca um valioso aliado: a falta de lembranças. Depois de um tempo as pessoas que vivem ali vão se esquecendo das coisas, até que as questões mais graves também acabam ficando no passado.

No decorrer dos três volumes, o autor vai construindo uma rica história, apresentada a partir de desenho belíssimo e uma extremamente bem cuidada palheta de cores, que consegue ao mesmo tempo ressaltar a dimensão decadente e arruinada quando retrata a Londres vitoriana, e as belezas das paisagens intocadas da Terra do Nunca.

Aos poucos cria um novo universo entremeado com o livro de J. M. Barrie para, de forma surpreendente e ambígua, nos deixar em aberto duas histórias paralelas que devem ser lidas com atenção. Uma sobre o passado do Capitão Gancho e outra sobre os assassinatos de Jack, o estripador.

PETER PAN
. De Régis Loisel
. Editora Nemo, três volumes, R$ 69 cada

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