Entre mitos e verdades

Cego Aderaldo, um dos mestres do improviso, das pelejas e cantorias nordestinas, é tema de biografia escrita pelo jornalista Cláudio Portella

por 28/12/2013 00:13
Escrituras/Reprodução
Escrituras/Reprodução (foto: Escrituras/Reprodução )
Carlos Herculano Lopes

Quase 50 anos depois da sua morte, em Fortaleza, onde está enterrado, o Cego Aderaldo, um dos mais célebres cantadores nordestinos de todos os tempos, continua a ser reverenciado e motivo de estudos e biografias país afora. A mais recente delas, Cego Aderaldo, a vasta visão de um cantador, do jornalista e escritor Cláudio Portella, acaba de ser lançada pela Editora Escrituras. É leitura indispensável para quem quiser saber um pouco mais sobre a vida e obra deste homem, que ficou imortalizado em pelejas famosas, como a que teria tido com Zé Pretinho do Tucum, em 1916, quando vivia em Belém.

Nascido no Crato, no interior do Ceará, em 24 de junho de 1878, filho de família humilde (o pai era alfaiate e a mãe dona de casa), consta que Aderaldo Ferreira de Araújo, que ficaria conhecido e famoso não só nas praças do Nordeste, mas também no Rio de Janeiro, como Cego Aderaldo, perdeu a visão aos 18 anos. Teria começado a cantar logo em seguida, depois de um sonho. Uma amiga, a quem teria contado a história, deu a ele um cavaquinho de presente e logo em seguida, já órfão de pai e mãe, o cego ganhou a estrada.

De acordo com Cláudio Portella, a primeira peleja de fato que Aderaldo teve, pois algumas foram fictícias (a com Zé Pretinho do Tucum teria sido uma delas) aconteceu com um tal de Antônio Felipe. Este cantou: “ Tenho atração de jiboia/ sou forte como um leão./ Na ciência em cantoria/ sou igual a Salomão./ A força deste meu peito/ veio do braço de Sansão”. Ao que Aderaldo, sem se fazer de rogado, teria respondido no ato: “No tempo em que eu era moço/ comia meu ensopado./ Agora que sou cego/ só como macaco assado”. A esta cantoria seguiriam-se centenas de outras. Muitas delas, lamentavelmente, não foram registradas.

Personagem de si próprio, com seus quase dois metros de altura, usando óculos escuros com aros redondos, o que lhe dava um diferencial e tanto, o Cego Aderaldo, segundo Cláudio Portella, era a sensação por onde passava. Todos queriam vê-lo, ouvi-lo cantar e conversar com ele. Também gostava de alimentar o próprio mito, inventava histórias, fantasiava e versejava em cima.

Como o famoso encontro que teria tido com Lampião, patrocinado pelo Padre Cícero Romão, do Juazeiro. Para alguns historiadores, como João Eudes Costa, que também estudou a vida do cego, isso nunca ocorreu de fato. Mas Aderaldo jurava que sim, e que inclusive o cangaceiro teria dado a ele uma arma de presente. Sendo ou não verdade, ele cantou: “Lampião então me disse:/ Eu só mandei lhe chamar/ foi para lhe conhecer/ e ouvir você cantar./ Tudo que souber de mim/ você pode improvisar”.

Gramofone

Outra faceta interessante do cego é que ele era homem atento às inovações do seu tempo. Gostava de investir nas novidades tecnológicas, como da vez em que, cansado de viajar pelo sertão, sempre se apresentando, resolveu comprar um gramofone, para ver se ganhava dinheiro, e “com a geringonça a tiracolo”, pegou novamente as estradas.

Virou sensação pelas cidades e vilas por onde passava: “Cobrava 100 réis por disco tocado. Os discos, de tanto tocar, estragavam rápido”, escreveu Portella. Tempos depois, sempre inventando modas, o cego também comprou uma máquina exibidora de filme, Patheé Baby, e dois burros. Arranjou algumas fitas variadas e se embrenhou novamente no sertão. “Mas o que o povo queria mesmo – independentemente das novidades, era ouvi-lo cantar”, lembra o jornalista.

Numa das suas idas ao Rio de Janeiro (uma delas a convite do então deputado Tenório Cavalcanti, que como ele era nordestino), algumas cantorias do Cego Aderaldo chegaram a ser gravadas. Isso ocorreu em 1949, nos estúdios do Ministério da Educação, quando gravou na companhia do cantador Domingos Fonseca. Os registros, com diferentes estilos de cantoria, seriam depois transcritos em partituras.

Depois de sua morte, em 1967, quando estava com 89 anos, músicos de renome como Inezita Barroso, Baden Powell, Egberto Gismonti e Naná Vasconcelos fariam músicas inspiradas na arte e na lenda do Cego Aderaldo. Na sua terra, no Crato, além de museu com objetos que lhe pertenceram, foi construída uma estátua de quatro metros de altura em honra ao filho ilustre, cujas cantorias, espalhadas em centenas de livretos de cordel, continuam a encantar gerações de leitores.

A peleja do Cego Aderaldo
com Zé Pretinho do Tucum

“Apreciem meus senhores
Uma forte discussão
Que tive com Zé Pretinho
Um cantador do sertão,
O qual no tanger do verso
Vencia qualquer questão.

Um dia determinei
Ao sair de Quixadá,
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará,
Fui até o Piauí
Ver os cantadores de lá.

Hospedei-me em Pimenteira,
Depois em Alagoinha,
Cantei em Campo Maior,
No Angico e na Baixinha;
De lá tive um convite
Para cantar na Varzinha.

Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho,
Então o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
– Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?

Eu lhe disse: – Não senhor.
Mas da verdade eu não zombo,
Mande chamar este preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo.
Ele vindo, um de nós dois,
Hoje há de arder o lombo

O dono da casa disse:
– Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos
Quando mais sendo só um.
Mandou lá no Tucumeiro
Chamar José do Tucum...”

Cego Aderaldo, a vasta visão de um cego cantador

. De Cláudio Portella
. Editora Escrituras, 192 páginas, R$ 28. Informações: (11) 5904-4499.

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