José simboliza a figura masculina do pai, trabalhador e companheiro

Para o teólogo Leonardo Boff, mesmo pouco presente nos evangelhos, santo traz lições para os dilemas do nosso tempo

por Walter Sebastião 21/12/2013 06:00
Renato Weil/EM/D.A Press
(foto: Renato Weil/EM/D.A Press)
Na cena de nascimento de Jesus, sintetizada nos presépios, reina o menino Deus recém-nascido. Maria irradia luz, emoção e alegria. Mas deixando o olhar flutuar ao sabor da atmosfera criada pelos dois personagens descobre-se o encanto de figura discreta, séria, silenciosa: São José. Elementos que tanto fazem parte da poesia que emana dele, mas que também pontua certa invisibilidade do terno carpinteiro na iconografia cristã. Fica na sombra personagem fascinante, com história dramática antes e depois do nascimento de Jesus.

São José, conta o teólogo Leonardo Boff, curiosamente, sem grande importância para a Igreja, nunca foi esquecido pelo povo de Deus. “São milhões de Josés no mundo, infindáveis nomes de escolas, de ruas, sem falar das igrejas a ele dedicadas. De alguma forma os fiéis intuem que aí está uma referência do pai bom, educador, trabalhador, companheiro e defensor de Maria e de Jesus. Se os evangelhos oficiais falam pouco dele, os outros evangelhos, chamados de apócrifos (porque não foram oficialmente reconhecidos pela Igreja), falam muito. As pinturas que temos de São José, no presépio, indo para o Egito junto com Maria, se inspiram nesses documentos”, explica.

Leonardo Boff tem um livro sobre São José, produto de 20 anos de pesquisa (São José a personificação do Pai, Verus Editora). “Não se pode pensar concretamente no mistério da encarnação sem a presença de José. Foi ele quem acolheu Maria grávida e criou as condições reais para uma vida de família. Mas na tradição nunca se deu muita importância a ele. Só se pensa em sua missão e, uma vez cumprida, ele pode desaparecer e ser esquecido”, observa o teólogo, lembrando que Maria, sem José, não teria condições de cuidar da vida de Jesus. Os primeiros sermões sobre São José só começaram a ser feitos a partir dos anos 800. “Por aí se percebe a pouca importância que lhe era atribuída”, exemplifica Boff.

“A razão é que vivemos num tipo de Igreja na qual o que conta é quem detém a palavra e poder de decisão, que são os bispos e os padres. De São José não temos nenhuma palavra. Ele apenas teve sonhos. Nem sabemos sua origem e quem foram seus pais”, lembra Leonardo Boff. “A Igreja não sabia o que fazer com São José. Em 1870, foi proclamado patrono da Igreja. Mas, na verdade, ele é patrono da Igreja dos invisíveis e anônimos, dos milhões e milhões de cristãos que vivem no seu dia a dia os valores do evangelho”, acrescenta. E vê, em São José, representações de milhões de cristãos que nunca aparecem nem podem falar e decidir sobre suas vidas e os rumos da sociedade em que vivem.

Qual o sentimento do senhor diante da cena do nascimento de Jesus?
Precisamos resgatar a inteligência emocional que vai além da razão intelectual. Quando nasce uma criança, nos enchemos de admiração e dizemos: sempre que nasce uma criança é sinal de que Deus ainda acredita na humanidade. Assim devemos entender os relatos bíblicos sobre o nascimento de Jesus. A comunidade cristã, quando escreveu os evangelho, cerca de 30-40 anos depois da crucificação de Jesus e de sua ressurreição, já havia entendido que atrás daquela criança se escondia o próprio filho de Deus. Por isso cercam a cena do Natal de significados celestiais, como anjos que cantam, a estrela no céu, os sábios que vêm de longe. Como tudo historicamente aconteceu não o sabemos pela razão intelectual, mas pela inteligência emocional intuímos que aí há um mistério ao qual nos acercamos com reverência e respeito. E criamos símbolos adequados que conferem relevância a esse fato, que, em si, pareceria banal.

Que tipo de paternidade São José enseja ou inspira?

A teologia cristã diz que ele exerceu todas as funções de pai, que foi a de cuidar de Maria em sua gravidez e de proteger Jesus e sua mãe, Maria, quando tiveram que fugir para o exílio. Viveu como esposo e iniciou o filho nas tradições religiosas do povo e na profissão de carpinteiro. Dogmaticamente, nada impede que ele tivesse sido pai biológico de Jesus. Os evangelhos falam que “Jesus é filho de José”, ou “o filho do carpinteiro”. Mas não é isso que testemunha toda a tradição cristã. A gravidez de Maria se deve à ação do espírito que veio morar nela e deu origem a uma nova humanidade, totalmente purificada do peso da história, marcada pelo pecado. Ele foi pai adotivo e legal no sentido semita, aquele que dá o nome à criança e assim se torna o pai social. De toda forma, Maria e Jesus formam a família de José.

Como a dimensão do masculino se afirma a partir de São José?
José mostra o lado melhor da paternidade, que é o de estar sempre ao lado da esposa e do filho. A Bíblia fala que era um “homem justo”. Na linguagem da época significava que socialmente assumia uma liderança e era considerado um ponto de referência para todos. Hoje, sofremos com o eclipse da figura do pai. Isso produz sentimento de insegurança nos filhos e a falta de limites. José foi um educador. Se Jesus mais tarde vai chamar Deus de “paizinho querido” isso significa que ele teve uma experiência de grande intimidade com o pai José. Freud mostrou que a base para uma imagem boa de Deus provém de uma relação boa com o próprio pai. Os tempos de José e os nossos são diferentes. Mas a missão é a mesma: ser aquela figura que cuida, que provê tudo o que a família precisa, que inicia nos valores éticos e espirituais do povo e que aceita correr riscos em defesa da família, como quando teve que enfrentar o deserto a caminho do Egito. Aí aparece a dimensão do masculino (a coragem, a determinação), que junto com o feminino (o cuidado e o amor) ajudam a constituir uma personalidade integrada e feliz, pois cada pessoa carrega seu lado feminino e masculino.

Qual a importância teológica de São José?
Tenho defendido a tese de que São José é a personificação do Pai celeste. Haveria um equilíbrio no mistério de Deus que se revelou à humanidade. O Espírito Santo, segundo Lucas, veio sobre Maria e fez morada nela. Em seu seio, por causa da presença do Espírito Santo, começou a se formar a santa humanidade do Filho do Pai. O Filho se encarnou em Jesus. E o Pai não ficou de fora desse processo. Ele é bem representado pela figura de José, porque o Pai é o mistério absoluto representado pelo silêncio (não fala, quem fala é o Filho), é o criador de todas as coisas. São José também é o homem do silêncio e o trabalhador. Não fala com a boca, mas pelas mãos que constroem a casa, os bancos, as janelas e os telhados. O Pai celestial é o que cuida de todo o universo e de cada um de nós, à semelhança de São José, que cuidou da família em tudo o que fosse necessário. São José comparece como a figura mais adequada para receber em sua vida a vinda do Pai que também veio morar conosco. Identifiquei na Igreja de São Francisco Xavier, na pequena vila de Saint François du Lac, em Quebec, no Canadá, um quadro de 1742 que representa são José com o mesmo rosto do Pai celeste que aparece no alto. Daí me veio a ideia de que São José é a personificação do Pai celeste. Assim temos a família divina encarnada na família humana. A totalidade do mistério da Santíssima Trindade entrou em nossa história e a santificou. São José é parte desta entrega total do Deus-família à família humana. Os cristãos deveriam refletir mais sobre essa conexão para se sentir mais envolvidos pela presença divina e ficar sabendo que o nosso Deus é um Deus próximo e que se revelou assim como é, como Pai (em José) como Filho (em Jesus) e como Espírito Santo (em Maria).

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