As referências se mantêm: Guimarães Rosa, na confissão da sapiência desconfiada; a Bíblia, em suas referências ao mesmo tempo dolorosas e gozosas; a vida besta drummondiana, misto de aquiescência e revolta; os signos da infância ou mesmo mais antigos, de um tempo anterior à fissão com o todo, a deixar seus convites para a recuperação da síntese no seio do todo.
Adélia Prado é mestra das palavras humílimas e senhora do sentido de verbos cheios de garbom, que usa parcamente. As imagens que brotam da fala da gente simples quase sempre perfazem o caminho da revelação: a beleza escondida, a inteligência penetrante, a sabedoria de viver. Cada poema de Miserere parece propor um tipo de conversa, que primeiro apresenta uma fatia do mundo, uma certeza ou dúvida íntima, depois se volta para o outro, para, por fim, tentar a síntese, fazer valer o tino de ser entre outros.
Se a poesia é trânsito, a poeta precisa aceitar para onde está indo. Adélia sabe. Por vezes, segura o passo: “Tão lírica minha vida/ difícil perceber onde sofri”; outras vezes mergulha no passado como quem vira as costas ao tempo: “Sou-lhe tão grata mãe/ sinto tanta saudade da senhora…” ; mas sem desmerecer o tempo que passou, ou nada disso teria sentido: “Minha mão tem manchas;/ pintas marrons como ovinhos de codorna”.
Com o horizonte da morte sempre presente, cada vez mais à espreita, ela parece se lembrar a todo momento da mãe e do pai. Torna-se um pouco os próprios pais, sente em suas palavras eco do que ouviu e viveu com eles. De repente, temos a idade de nossos pais e ainda sentimos, em algum lugar do corpo, que somos crianças. A experiência da orfandade é uma recuperação da meninice: nunca estamos totalmente preparados para a solidão que nos alcança um dia. “Criancinha de peito, essa já sabe/ seu olhar muda quando desmamada”.
Há algumas imagens de grande força que se incorporam ao repertório adeliano com sua permanente sensibilidade para gerar o inusitado do sentido a partir dos momentos mais singelos: “Como o doido, bato a cabeça só pra gozar a delícia de ver a dor sumir quando sossego”; “Fiquei mais corajosa,/ igual a mulheres que julgava levianas/ e eram só mais humildes”; “as axilas do Deus de Michelangelo,/ profundas, musculosas, bravas,/ abundantes do suor de quem trabalha duro”.
A leitura de Miserere se parece com uma forma de oração. As palavras ao princípio fazem muito sentido e depois vão sendo tragadas pela beleza e passam a ter outra encarnação. Ao ler os lábios começam a se mover, como se tentassem formular um certo nome, indizível, mas sempre presente. Há a reza dos crentes, dos pensadores sem fé e das pessoas comuns. Ao longe só se vê o movimento dos lábios. Adélia põe as palavras na nossa boca. A poesia ensina o caminho do coração e da inteligência. E ainda clama por misericórdia. Só a poesia salva.
O pai
Adélia Prado
Deus não fala comigo
nem uma palavrinha das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo e, se o fizesse,
como um aborígene coberto de amuletos
sacrificaria aos estalidos da mata;
não me tirasse a vida um tal terror.
A seus afagos não sei como agradecer,
beija-flor que sob meus olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha me trata como filhinha.
De tempestades, só mostra o começo e o fim.