Adélia Prado lança 'Miserere', livro com 38 poemas

Na obra, escritora refaz sua ligação direta entre o sagrado e a poesia

por João Paulo 14/12/2013 00:13
 Marcos Vieira/EM/D.A Press
(foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
O título do livro, em latim, Miserere, pode indicar muitas coisas: a proximidade da religião, com seu cheiro de coisa antiga e distinta; a aceitação do destino de sofredora; o pedido de misericórdia, um “tem piedade de nós” repetido como um mantra a cada constatação de uma dívida impagável. Adélia não usa as palavras sem pesar todos os sentidos. Miserere é um livro que vem sendo escrito com o passar dos anos, ele carrega toda a poesia de Adélia, todas as suas idades, todos os tempos que vão se juntando, o arco de uma vida com suas estações e direção ao fim.

Com 38 poemas, todos magníficos, Adélia Prado refaz sua ligação direta entre o sagrado e a poesia. Há um arranjo entre a beleza e a busca de sentido que transforma o projeto literário em uma empresa pessoal, um operoso caminho ascensional que se nutre das substâncias mais comuns: a memória, o prazer das coisas simples, a carne, o mistério e o encontro. A poeta parece ter deixado de lado o empenho em gozar o mundo para tentar se localizar nele. Achar seu cantinho. Sentir a comunhão com o próximo.

As referências se mantêm: Guimarães Rosa, na confissão da sapiência desconfiada; a Bíblia, em suas referências ao mesmo tempo dolorosas e gozosas; a vida besta drummondiana, misto de aquiescência e revolta; os signos da infância ou mesmo mais antigos, de um tempo anterior à fissão com o todo, a deixar seus convites para a recuperação da síntese no seio do todo.

Adélia Prado é mestra das palavras humílimas e senhora do sentido de verbos cheios de garbom, que usa parcamente. As imagens que brotam da fala da gente simples quase sempre perfazem o caminho da revelação: a beleza escondida, a inteligência penetrante, a sabedoria de viver. Cada poema de Miserere parece propor um tipo de conversa, que primeiro apresenta uma fatia do mundo, uma certeza ou dúvida íntima, depois se volta para o outro, para, por fim, tentar a síntese, fazer valer o tino de ser entre outros.

Se a poesia é trânsito, a poeta precisa aceitar para onde está indo. Adélia sabe. Por vezes, segura o passo: “Tão lírica minha vida/ difícil perceber onde sofri”; outras vezes mergulha no passado como quem vira as costas ao tempo: “Sou-lhe tão grata mãe/ sinto tanta saudade da senhora…” ; mas sem desmerecer o tempo que passou, ou nada disso teria sentido: “Minha mão tem manchas;/ pintas marrons como ovinhos de codorna”.

 Com o horizonte da morte sempre presente, cada vez mais à espreita, ela parece se lembrar a todo momento da mãe e do pai. Torna-se um pouco os próprios pais, sente em suas palavras eco do que ouviu e viveu com eles. De repente, temos a idade de nossos pais e ainda sentimos, em algum lugar do corpo, que somos crianças. A experiência da orfandade é uma recuperação da meninice: nunca estamos totalmente preparados para a solidão que nos alcança um dia. “Criancinha de peito, essa já sabe/ seu olhar muda quando desmamada”.

Há algumas imagens de grande força que se incorporam ao repertório adeliano com sua permanente sensibilidade para gerar o inusitado do sentido a partir dos momentos mais singelos: “Como o doido, bato a cabeça só pra gozar a delícia de ver a dor sumir quando sossego”; “Fiquei mais corajosa,/ igual a mulheres que julgava levianas/ e eram só mais humildes”; “as axilas do Deus de Michelangelo,/ profundas, musculosas, bravas,/ abundantes do suor de quem trabalha duro”.

A leitura de Miserere se parece com uma forma de oração. As palavras ao princípio fazem muito sentido e depois vão sendo tragadas pela beleza e passam a ter outra encarnação. Ao ler os lábios começam a se mover, como se tentassem formular um certo nome, indizível, mas sempre presente. Há a reza dos crentes, dos pensadores sem fé e das pessoas comuns. Ao longe só se vê o movimento dos lábios. Adélia põe as palavras na nossa boca. A poesia ensina o caminho do coração e da inteligência. E ainda clama por misericórdia. Só a poesia salva.


O pai

Adélia Prado


Deus não fala comigo
nem uma palavrinha das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo e, se o fizesse,
como um aborígene coberto de amuletos
sacrificaria aos estalidos da mata;
não me tirasse a vida um tal terror.
A seus afagos não sei como agradecer,
beija-flor que sob meus olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha me trata como filhinha.
De tempestades, só mostra o começo e o fim.

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