Adélia Prado lança livro no qual retoma o diálogo com a religião, a passagem do tempo, a memória e a morte

Escritora mantém rotina em sua casa em Divinópolis

por Carlos Herculano Lopes 14/12/2013 00:13
Marcos Vieira/EM/D.A Press
(foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Quarenta anos depois de ter apresentado seus poemas a Affonso Romano de Sant’Anna, que entusiasmado com a leitura dos mesmos os mostrou a Carlos Drummond de Andrade, que por sua vez recomendou a publicação – o primeiro livro, Bagagem, sairia em 1976 com as bênçãos do poeta maior –, Adélia Prado, depois de três anos de A duração do dia, lança Miserere. O novo volume de poemas só vem confirmar sua condição de maior poeta viva do Brasil, ao lado do maranhense Ferreira Gullar, do padrinho mineiro Affonso Romano e do pantaneiro Manoel de Barros. A temática mística e religiosa que a tem inspirado continua forte.

Lançando mãos dela, Adélia explora, com sensibilidade à flor da pele, que às vezes chega até a doer, os eternos sentimentos humanos de abandono, solidão, alegria contida e, às vezes, desencanto, mas sem nunca perder a fé, a esperança e a vontade de viver em toda plenitude. Como em “Pomar”: “Os açúcares das frutas/ me arrombaram um jardim/ a meio caminho de trincar os dentes/ a doce areia, seus cristais de mel./ A vibração do que chamamos vida”.

Vivendo em Divinópolis, onde nasceu em 1935, se casou e criou família, Adélia Prado diz que sua poesia, independentemente dos rumos que tenha tomado desde Bagagem, a deixa muito feliz, porque o rumo é sempre o da beleza. “Drummond disse: ‘Poesia, o perfume que exalas é a tua justificação’. É só trocar perfume por beleza e continua perfeito. De 1976 para cá o que aconteceu foi, acredito, um aprofundamento. Novas experiências e você desce um pouco mais na ‘mina escura e funda’, com uma lanterna mais potente. Quanto maior a escuridão, mais preciso de luz. E a poesia é, como toda luz, pura generosidade. É a luz da divina luz”, diz Adélia. Esta “mina escura e funda”, no seu caso, foi se iluminando à medida que se aprofundava na escrita, que com o tempo foi se sofisticando, sem perder a simplicidade.

Já em 1978, dois anos depois da publicação de Bagagem, ela lançou livro que deu o que falar nas rodas literárias, O coração disparado. Em seguida, vieram novos volumes de poemas, como Terra de Santa Cruz, O pelicano e Oráculos de maio. Adélia se consagrou também na literatura infantojuvenil e na prosa, com Solte os cachorros, de 1979, Os componentes da banda, em 1984, O homem da mão seca, de 1994, entre outros.

Leitora constante da Bíblia desde a juventude, pois segundo ela não há como não visitar frequentemente as escrituras, com seus profetas e salmos, que oferecem um anúncio de salvação, Adélia confirma que o sentimento religioso e místico continua forte em Miserere. “Muita gente vive com o que podemos chamar de ‘uma fé natural’, que se vale dos afetos e valores numa medida mínima de proteção e conforto humanos. Não se desesperam e isto para mim é milagroso, inacreditável”, afirma.

Mas a sensualidade feminina, brejeiramente mineira, também é mostrada sem rodeios e nenhum medo de ser feliz, como no poema “A paciência tem limites”: “Dá a entender que me ama,/ mas não se declara./ Fica mastigando grama,/ rodando no dedo sua penca de chaves,/ como qualquer bobo./ Não me engana a desculpa amarela:/ ‘Quero discutir minha lírica com você’./ Que enfado! Desembucha, homem,/ tenho outro pretendente/ e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio/ que este verso doente”.

Escritora exigente, que sempre revisita seus textos, Adélia conta, sobre o seu processo de escrita, que, pelo menos no seu caso, poucos poemas permanecem como chegam. “Só alguns nascem limpos. Aos outros dou um banho para tirar o sebo da criança. Da inspiração e seus excessos, tiro os excessos”, conta. Sobre a infância, também tão presente na sua obra, ela diz ser um lugar aonde vai sempre, cada vez com mais encantamento. “É onde quero ficar, onde a morte, Deus e a vida estavam em feliz unidade. Perdê-la é perder-me, é ficar velha sem cura, porque sem a alegria e os deslumbramentos que ganhei”, diz.

Sempre quietinha em Divinópolis, ao lado do marido, Zé de Freitas, com o qual está casada há muitos anos, Adélia diz que gosta de viver na cidade, já que a família quase toda está lá. Mas às vezes, por questões de ofício, também costuma viajar para participar de feiras de livros e bater papo com os leitores. “Fazer palestra é bom, tem audição e questionamentos, é um encontro sem nada acadêmico”, descreve.

Com o lançamento de Miserere, que chega hoje às livrarias, certamente terá de pegar novamente a estrada. Se gosta de viajar de avião? “Arrisquei outro dia”, conta. Para em seguida dizer que, na vida, o que importa é ter fé, “porque isso significa aceitá-la como um dom, cuja finalidade e sentido ultrapassam a pobreza de nossa razão e nos ensinam a comportar como criatura, com humildade e reverência”.

Miserere
. De Adélia Prado
. Editora Record, 94 páginas

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