Aos 116 anos, a capital de Minas Gerais abriga o sonho de progresso dos construtores pioneiros

Cidade vive permanente diálogo com a dinâmica da história e a necessidade de preservação da memória

por Leônidas Oliveira 07/12/2013 00:13
Fotos: Acervo MHAB
Fotos: Acervo MHAB (foto: Fotos: Acervo MHAB)
Em fins do século 19, decidiu-se pela construção de nova sede para o Governo do Estado de Minas Gerais que representasse as ideias de progresso e modernidade, consolidadas com a instauração do regime republicano no Brasil. Uma cidade planejada, racional, controlada, organizada. Entretanto, a consolidação desse projeto exigia a destruição do Arraial de Bello Horisonte, antigo Curral del Rey, fundado no início do século 18, acomodado no leito do Córrego do Leitão e do Ribeirão dos Arrudas. Ao longo das décadas, segundo Luana Maia, a lembrança desse arraial representou a origem que se quis esquecer, o símbolo de uma identidade que permaneceu subliminar em discursos que buscavam, repetidamente, apagá-la. E a cidade então nasce, com forma regular, influenciada pelo positivismo europeu.

Contudo, tal regularidade não constituiu novidade. Na escrita hieroglífica egípcia, a cidade se representa como uma cruz inscrita num círculo, duas figuras recorrentes na história da criação das urbes, com sua correspondente leitura: linhas geométricas elementares, como instrumento capaz de conseguir uma ordem diferente e positiva em relação à natureza exterior, que não conhece nenhum sistema alheio a ela mesma. O círculo hieroglífico insinua a ideia de recinto do terreno da casa e do território da cidade, enquanto a cruz representa a disposição das ruas que conformam as quadras das casas.

Assim posto, conclui-se que Hipodamos de Mileto não foi, portanto, o primeiro a criar cidades quadriculadas, ainda que seja o único nome de urbanista da Antiguidade do qual nos chegam notícias, algumas vezes imprecisas, mas fiéis, como vemos em Aristóteles, em sua Política. O ideário de linha reta e de eixos visuais nos acompanha, então, desde cronologias muito antigas, como expressão magna da racionalidade da vida civilizada. No Egito, como na Grécia, o traçado se reflete, palidamente, como tentativa de ordenamento do caos, preceito que o homem busca impor sobre a paisagem natural, sobre o território e sobre si mesmo.

Em Belo Horizonte, cidade da Minas barroca, há uma redescoberta da linha reta no projeto da nova capital, em contraposição à irregularidade colonial do traçado anterior, ou seja, temos o regular como norma e o irregular como sistema. No entanto, a cidade se expande rapidamente e os contrapontos de cidade planejada, imaginada e vivenciada tornam-se elementos importantes para compreender a paisagem cambiante que se reinaugura a cada momento. Nessa dinâmica, os grupos sociais que aqui chegaram continuaram o trabalho ao refazer a cidade: formaram novos núcleos fora do ordenamento, contrapondo-se ao plano regular, como imposição do artifício sobre a paisagem. Assim, leva implícita a gênesis de uma cidade ideal, que cumpre, em parte, suas pretensões segundo as previsões – um pequeno e absoluto traçado geométrico. No entanto, abre e amplia suas possibilidades, submetida ao crescimento genérico, materializado no desenvolvimento de traçado irregular, nascido pelas mãos das diversas gentes, uma vez que nessas mesmas culturas se mantiveram vivas as memórias de outros sistemas, com atitudes éticas e estéticas diversas.

O modelo de plano regular de Aarão Reis, assim como o dameiro hipodâmico, se desenvolve segundo a mais antiga das propostas conhecidas: a criação de uma superfície de cidade que ainda não existe, uma cruz circunscrita sobre um círculo, reservando para ela o solo necessário, como se fosse possível medir e controlar o próprio tempo de sua jornada como urbe. Portanto, o plano como documento equivale a um projeto de futuro em contraposição ao passado. Eis o espírito higienista do fim do século 19, que levou à invenção de Belo Horizonte e ao apagamento ilusório da ideia do arraial colonial e, consequentemente, das paisagens reinventadas pelo novo modelo urbanístico.

Em tal itinerário, é notório que o projeto de Aarão Reis, como é próprio de qualquer tentativa de instaurar nova ordem, busca mudar os desígnios culturais de seu povo. Mas, em algum ponto ou em muitos, faz renascer – considerando que estamos em Minas – os arraiais. Lugares impregnados na alma mineira, distribuídos e formados irregularmente, instalam-se nos contornos do ideário da mineiridade: em volta das nossas cozinhas, de nossas montanhas e vales, no barroco das nossas igrejas, no desenho irregular, quase medieval, das nossas cidades e vielas.



Calcular e embelezar


A Comissão de Estudos das Localidades Indicadas para a Nova Capital (Celinc) foi assim formada, sob a chefia de Aarão Reis. O clima ameno, a abundância de recursos hídricos e a beleza da paisagem natural, entre outros atributos, concorreram para que Belo Horizonte e Várzea do Marçal fossem as indicadas pela Celinc para o cobiçado destino. Após hesitações e manobras políticas, em 1893, a região do antigo Curral del Rei foi finalmente escolhida para ser a nova capital. Os habitantes do pacato vilarejo receberam com entusiasmo a notícia e vislumbraram na novidade oportunidades de enriquecimento, bons negócios, modernização e mudanças.

A Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) foi oficialmente constituída em fevereiro de 1894, com o objetivo de aprofundar os estudos sobre o Arraial de Bello Horisonte, elaborar projetos do traçado urbano e de edificações, orçar os gastos e, finalmente, executar todas as obras necessárias à construção da nova cidade. O coordenador dos trabalhos formou uma equipe de “arquitetos-projetistas,” engenheiros e artistas, responsáveis por projetar, calcular e embelezar os edifícios e as vias públicas. Em maio de 1895, Aarão Reis deixa a CCNC, sendo substituído por Francisco Bicalho, que se manteve na chefia até o fim dos trabalhos, seguindo rigorosamente os projetos e ideais concebidos por seu antecessor.

O cenário do então sossegado arraial foi profundamente transformado com a chegada dos engenheiros e demais trabalhadores. Material de construção, entulhos e ora a poeira dos dias ensolarados, ora a lama dos dias chuvosos definiam a paisagem belo-horizontina.

O projeto dividia o espaço urbano em zonas de ocupação, indicava percursos predefinidos e segregava alguns grupos sociais, proporcionando dinâmica urbana estratificada e hierarquizada. Apesar da atenta supervisão e do controle da CCNC, conferindo o andamento dos trabalhos, percorrendo diariamente os canteiros de obras, examinando e aprovando os projetos de todas as edificações a serem construídas, nem tudo saiu como o previsto, no entanto, em 12 de dezembro de 1897, a cidade foi inaugurada com vários trechos inacabados.

Quando a dinâmica da construção de Belo Horizonte já estava em curso, os antigos moradores do arraial perceberam que seu modo de viver, então obsoleto, não teria mais espaço naquela nova realidade planificada e ordenada. Primeiramente, muitos horizontinos foram convidados a ceder suas casas aos membros mais importantes da CCNC, que demandavam os melhores alojamentos, acostumados com o que consideravam ser o conforto do progresso. Para o restante dos trabalhadores, eram oferecidas vagas em hotéis, pensões ou casas para alugar.

Progresso e memória


Cento e dezesseis anos depois, o que vemos é um espaço urbano de múltiplas interpretações. Fragmentado, articulado, simbólico, ou seja, produto social resultante de ações acumuladas, a partir de temporalidades engendradas por agentes que produzem e consomem espaço na urbe chamada Belo Horizonte cujo desígnio do nome leva intrínseca a paisagem, como elemento primordial do nascimento da cidade e de seu desenvolvimento.

A despeito das intenções disciplinadoras da ideologia positivista, a paisagem, profundamente manipulada, mostra-se plural e paradoxal. Os espaços planificados dividem o horizonte com incômodos resquícios do arraial, com o fortuito, com o improviso. Nesse contexto moldado pelo antagonismo entre o acaso e o planejado, a dinâmica própria do local e os conflitos oriundos das profundas transformações no espaço são, por vezes, esquecidos ou subestimados.

A preservação da memória e da identidade do povoado não interessava aos anseios progressistas do poder público. Às tradições locais, consideradas retrógradas, foram sobrepostos novos modos de pensar e de viver, concorrendo para que uma nova cidade, com aspirações a metrópole cosmopolita, se formasse, sobre os escombros dos símbolos culturais do Arraial de Bello Horisonte.

Contudo, as identidades de Belo Horizonte ressurgem cotidianamente e são, por natureza, múltiplas, fragmentadas, multifacetadas e dinâmicas. Em eterna mutação, criação, destruição e reestruturação, as referências possuem característica peculiar e basilar: a negação de seu passado. A memória do arraial surge em alguns momentos como herança que se tenta esquecer, que envergonha a pretensa cidade cosmopolita, na qual o vilarejo pretendia se transformar. Assim, segue o embate, de suas gentes, entre a metrópole e esse passado de arraial simbólico que sempre volta, produzindo discurso que enaltece o desenvolvimento e busca apagar a memória, caracterizando Belo Horizonte como a cidade do eterno porvir.

Completando 116 anos em 12 de dezembro, essa reflexão torna-se importante para todos nós, que aqui vivemos, bem como a de conhecer o outro lado: a necessidade de pensarmos a cidade, no entanto, considerando sua complexidade e, sobretudo, sua memória e a necessidade vital de pertencimento, tão essenciais para o pleno desenvolvimento da vida. Nós todos somos arraial, terra, edifício, praça e mundo. Buscar o equilíbrio entre essas forças e compreender seu alcance torna-se elemento primordial para a felicidade na cidade que escolhemos para viver.

. Leônidas Oliveira é presidente da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.

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