Ranking do Enem se transformou em instrumento de marketing para escolas bem posicionadas

Civilidade, consciência crítica, conhecimento, capacidade de ação social, solidariedade, humanismo são deixados de lado em ensino, que se torna cada vez mais um negócio

por João Paulo 30/11/2013 00:13
Jair Amaral/EM/D.A Press
(foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Na quarta-feira, a manchete deste jornal gritava: “Colégios mineiros no topo do Enem”. Tudo indicava, inclusive a foto festiva que enfeitava o alto da capa, que se tratava de uma boa notícia. Bastou ler a reportagem, sobretudo os depoimentos de diretores de escolas que não mantiveram lugares de destaque registrados no ano passado, para ver que estamos atravessando um absurdo deserto de valores. Na verdade, a educação foi a grande perdedora nesse evento lamentável, já que a relação fornecida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação (MEC), nada mais significou que instrumento de marketing para as escolas bem posicionadas na relação, ou alimento de reclamação e choro para as que foram preteridas ou perderam posição no ranking.


A situação não é nova. Há muito a educação no Brasil se tornou um negócio. Até aí, nada de mais, é o solo em que nos firmamos numa sociedade de mercado. No entanto, mesmo na mais estrita ética de qualquer negócio, o mais importante é a qualidade de seu produto. No caso das escolas, na intangível materialidade da educação, o “produto” pode ser traduzido de muitas formas: civilidade, consciência crítica, conhecimento, capacidade de ação social, solidariedade, humanismo. Ou seja, essas são as habilidades e valores que desejamos ver em nossos filhos ao fim do processo educacional.

No entanto, a lista do Inep e sua exploração pelas escolas particulares mostra que o cenário é outro. Tanto a direção das instituições de ensino como os professores e alunos se sentem participantes de uma grande gincana, cujo prêmio é a distinção, a diferenciação, o destaque. Estar à frente de outros é mais importante que estar ao lado de todos. Se um colégio, ou para usar nome mais antigo e expressivo, um educandário, vale o nome que tem, deveria buscar a solidariedade, não a competição. Esse clima de disputa, no entanto, não prejudica apenas o aspecto moral, mas também o pedagógico.

Como dizia Freud, a educação é uma tarefa impossível, seja pela perenidade do processo (por isso medir seria sempre um equívoco e comparar um erro ainda mais grave), seja pela singela realidade de que ninguém ensina ninguém: as pessoas aprendem no contato social, sempre em mão dupla. E é bom lembrar o criador da psicanálise, já que o comportamento dos diretores de escolas que perderam posições no pódio armado pelo Inep demonstra um inequívoco traço persecutório. Eles garantem que vão entrar com recurso junto ao MEC para rever a relação. Se sentiram traídos pelos deuses aos quais fizeram suas libações.

As declarações dos diretores e supervisores estampadas na reportagem de quarta-feira, neste sentido, não precisam de comentários em sua explícita entrega da frustração em que se encontram por não mais ocupar lugares de destaque. Eles lamentam não poder comemorar os resultados e, o que é mais grave, o fato de não poder dar aos alunos o atestado do sucesso do processo pedagógico, como se a chancela do Inep fosse mais importante que outros indicadores qualitativos, aos quais deveriam estar atentos. Como a cidadania e o saber, por exemplo.

Tudo parece indicar que a pontuação tem um peso forte na valorização dos colégios no mercado da educação privada. Estar em boa posição é argumento para cobrar mais caro. Nisso, a divulgação dos resultados do Enem por escolas se mostra equivocado. Ora, ou o resultado serve para identificação de problemas, e com isso deveria contribuir para direcionar ações de apoio e investimento aos estabelecimentos, ou é apenas instrumento de propaganda para majorar preços, que parece ser o caso. E, o que é mais grave, há um efeito Pigmalião às avessas: quanto pior o índice, mais isolada ficará a escola. O parâmetro comparativo de realidades distintas incentiva o preconceito. O que incide ainda mais na escola pública em seu descaso com carreira dos professores, traduzido em salários indignos e abaixo do patamar previsto em lei. Sem que faltem sequer as chicanas que transformam salários em subsídios para burlar a regra constitucional.

Sem amor

Mas há três outros problemas graves nessa história. O primeiro é a tendência das escolas em criar uma atmosfera interna de cobrança e competitividade, que em nada atende a propósitos pedagógicos e éticos, mas apenas à conquista de degraus mais altos no pódio. Assim, os alunos que estão lá para aprender, e que eventualmente tenham problemas de aprendizagem, são convidados a se retirar do recinto com a pecha de fracassados. Em nome da disputa, vão sendo afastados os sujeitos do processo educacional exatamente pelo fato de precisarem de educação. A melhor escola não é de melhores alunos, mas a que trata melhor diferentes tipos de alunos, sobretudo os com maior dificuldade em aprender.

O outro desvio grave está ligado muitas vezes à própria ideologia religiosa de algumas escolas da capital, como o Santo Antônio e o Loyola, que reclamaram da exclusão da lista dos “top ten”. Em vez de reafirmarem seus propósitos educativos, evidenciam sua filiação ao ethos da competitividade com a decisão de questionar o Inep. Colégios fundados por congregações de jesuítas (como o papa Francisco) e franciscana (com sua humildade de origem) não ficam bem na missa rezada em nome da disputa e da exclusão da diferença de ritmos e estilos de inteligência. Prestam um desserviço à educação, à religião e à ética e ainda desestimulam seus alunos na senda nobre da solidariedade.

A teologia católica é fundada em diversos valores, mas a base é caridade. Uma distorção histórica fez da caridade em nosso país uma espécie de desvio compensador das más intenções. Os caridosos tratam sempre do resto, dividem o que têm de bom e doam o que não presta, acham que os pobres só precisam de comida e que tudo mais é luxo. Essa postura chauvinista, felizmente abandonada por teologias mais humanistas, que recuperaram o sentido de amor presente na palavra caritas, está na base da ligação do Estado brasileiro com a Igreja católica, em conúbio que gerou uma série de vantagens para as escolas ditas religiosas, da doação de terrenos à isenção de impostos por décadas. Quando os educandários religiosos passam a ser guiados por intentos capitalistas de forma tão desabrida, talvez tenha chegado a hora de cobrar a conta. Quem sabe na forma de cota de bolsas para estudantes sem condições de pagar mensalidades. Não como “caridade”, mas como direito legítimo de usufruir da riqueza gerada socialmente pelo trabalho de várias gerações.

Por fim, a opção entre a consciência crítica e o adestramento diz muito dos valores do nosso tempo. Uma educação voltada para aprovação em concursos e para a seleção de profissões por classes sociais (que podem pagar colégios mais eficientes) é reprodutora, no sentido indicado por Bourdieu e Passeron: não serve para ler e criticar o mundo, mas para reconstituir a cada geração os mesmos privilégios das anteriores. Uma educação voltada para o mercado é puro treinamento, alienante e alienador, focalizado em avaliações produtivistas. Não ensinam a questionar o mundo, mas a como se dar bem nele. Trata-se do cumprimento de uma agenda vinculada à produção e que vê no homem e na mulher apenas a força de trabalho. Não é um acaso que se fale tanto em educação profissionalizante para os pobres (a classe média não quer seus filhos nesses bancos escolares desprestigiados) e se critique tanto o acesso dos pobres ao ensino superior (como se eles conspurcassem a diferenciação de classes e, muitas vezes, de raça, teimando em combater políticas de cotas e outros instrumentos de inclusão).

Outro lado

Se o clima de competição conspícua e anti-humanista absorve os colégios ditos de ponta, os bons exemplos não param de vir da ação dos professores realmente comprometidos com a educação. Que são seguramente a maioria. O chororô das escolas da Zona Sul católica de BH não impediu, na mesma semana da divulgação da lista do Enem, que dois exemplos também ganhassem divulgação fora do difícil dia a dia do ensino público. Na Escola Municipal Gracy Vianna Lage, localizada na Rua 63, 23, no Bairro Jardim dos Comerciários, em Venda Nova, os alunos e professores se uniram para produzir um vídeo sobre o preconceito racial que mostra o verdadeiro sentido da palavra educação.

Desde que o ensino sobre história e cultura afro-brasileiras passou a ser obrigatório, tem sido um esforço da comunidade escolar encontrar formas de debater o conteúdo que permeia a vida social, mas que ainda não ganhou tradução em instrumentos pedagógicos. Com atuação de meninas de 8 e 9 anos, a E. M. Gracy Vianna Lage realizou o curta-metragem Bom pra quê?, uma brincadeira sobre a diferença dos cabelos das crianças, que vai participar de mostra em Brasília, em 2 de dezembro. Mais que ensinar sobre relações étnico-raciais, trata-se de uma atitude construtiva, integradora e geradora de solidariedade social. Além de desmanchar, com as armas da inteligência e sinceridade, toda a burrice que há por trás da discriminação.

Outro bom exemplo foi dado pela professora Joana D’Arc Camargo, que, com seu empenho pessoal, levou toda a turma de jovens de sua escola do Morro das Pedras para conhecer de perto os painéis Guerra e Paz, de Portinari, que estiveram expostos no antigo Cine Brasil, no Centro de BH. Para levar adiante seu projeto, ela foi nada menos que 23 vezes à mostra, levando as crianças em seu carro e arcando com toda a despesa do passeio. Com sua sensibilidade e conhecimento de história da arte, ela sabia que as crianças se identificariam com os personagens infantis criados pelo artista brasileiro. João Portinari, filho do pintor, ficou emocionado com a história.

A alegria dos jovens de Belo Horizonte pode ter origem numa competição que exclui ou numa sensibilidade que agrega. Podemos ser alegres pela distinção ou pelo pertencimento. Quando você ouvir alguém defendendo o investimento em educação, talvez seja um bom momento de perguntar: que mundo queremos construir? A escola que temos não é apenas uma antevisão do que seremos, mas um alerta para o que podemos estar nos tornando.

jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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